21 de novembro de 2024

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Presunção de inocência: o estrago causado pela ignorância jornalística

Bom, tenho certa autoridade para escrever sobre o tema “presunção da inocência”. Escrevi mais de 20 artigos sobre o assunto, protagonizei em boa parte a ADC 44 e sustentei no Plenário do STF.

Também já participei de audiência pública com os deputados. Debatendo a PEC 199 que busca dar uma volta na decisão do STF.

Por Lenio Streck*, no ConJur

O deputado Fábio Trad apresentou parecer, incluindo — corretissimamente — na proposta original todas as áreas do Direito: do cível ao crime, do tributário ao trabalhista, passando por todo o restante das incontáveis áreas. Não concordo com a PEC. É contrária à Constituição. Porém, se é para os processos criminais, deve ser para todos. Todos. Questão de coerência. Ainda acho que está errado, mas o mínimo que se espera em uma democracia digna do nome é que se esteja errado ao menos em coerência interna.

Caminhando na esteira ontem, quinta-feira, dia 2 de julho, zapeei e cheguei na GloboNews. A manchete, “imparcialmente” posta pelo imparcial Cesar Tralli, dizia: deputados querem afrouxar a PEC da prisão em segunda instância. Querem que somente sejam atingidos os acusados cujas ações começarem depois da vigência da PEC ou algo assim. O Jornal Nacional, por óbvio, entrou na onda.

E aí o pau pegou. Um bom exemplo de como não se deve fazer jornalismo é assistir gente como Cristiana Lobo, Gerson Camarotti e Gabeira debatendo esse tema. Comandados pelo “imparcial” — tanto como foi Sérgio Moro — Cesar Tralli. Jornalista pode ter lado, é claro. Só não pode distorcer fatos.

Não deve haver revisor ou assessor para assuntos jurídicos na GloboNews. Não deve haver assessor para assuntos da verdade. Ou instruções para não contarem mentiras.

Demonstro. Já antes da votação das ADC pelo STF, os jornalistas (especialmente da GN — embora o assunto também estivesse nos grandes jornais) mentiram para a população. Diziam: se o STF decidir pela constitucionalidade do artigo 283 (dando procedência às ADCs), 160 (alguns falavam em 190) mil ladrões, assassinos, estupradores e corruptos seriam soltos (a montanha pateticamente pariu um rato: nos primeiros meses, a decisão do STF proporcionou a soltura de meia dúzia de poucos presos no RS, menos de centena no Rio e 8 ou 9 na lava jato — comparem tudo isso com o ameaçador número de 190 mil…; nenhum setor da imprensa pediu desculpas pela gafe). Mais: berravam em tom ameaçador que “STF deve decidir entre impunidade e justiça”! E lá vinha a conversa mole: “STF proíbe prisão em segunda instância”. “— É o caos”, dizia Merval. E Camarotti replicava. Bom, um grupo de parlamentares acreditou. E fez a PEC.

Agora vem um novo round. Além do ataque a quem defenda uma regra simples de processo penal sobre a lei no tempo, os ataques são para quem se coloca contra a PEC. Observe-se: mesmo que se entenda que somente fatos cometidos depois da PEC ou os fatos anteriores, isso apenas é regra de transição. Não é regra eterna. Elementar isso. Aliás, se hoje o STF tem o entendimento de que o 283 do CPP é constitucional, por qual razão uma PEC retroagiria para prejudicar alguém? Há um direito adquirido a um direito (veja-se artigo do juiz Samer Agi sobre o tema).

Mientras, vejam alguns comentários que anotei no programa da GloboNews da quinta-feira, andando na minha esteira:

— Cristiana Lobo (não deve entender absolutamente nada de direito e, por isso, deveria seguir o mestre Wittgenstein: sobre o que não se sabe, nada se deve falar) disse: uma maneira de não aprovar a PEC e assim continuar com a impunidade (oh, palavrinha!) é o que fez o relator Fabio Trad, ao colocar que, após a segunda instância, todas as áreas serão atingidas. Para ela, isonomia quer dizer impunidade e malandragem. E lascou: imaginem um empresário que foi condenado na justiça trabalhista ter que ir preso após a segunda instância… (toing!). E ainda falou dos empresários em ações de direito tributário. Dureza, não? Genial. Empresários serão presos por ações trabalhistas. Por causa da PEC. “Assustador”, não? Registro: o que não está dito é que, para ela e para as elites brasileiras, a liberdade (dos outros) vale menos do que a propriedade. Aliás, o Código Penal já diz isso…! Surpresa?

— Gerson Camarotti, que tanto criticou as gafes de Weintraub, poderia se informar melhor sobre uma área que desconhece. Não há muita diferença entre escrever “imprecionante” (sic) e ficar dizendo inverdades sobre o tema “presunção de inocência”. Disse que os deputados que defendem que os efeitos da PEC sejam apenas para fatos ocorridos após a promulgação querem dar anistia aos corruptos (sic). Como assim? E insinuou que quem assim pensa no parlamento é porque é réu ou investigado… Aqui no RS se diria: Bah!

— Fernando Gabeira (sempre me surpreendo com ele!) entrou de sola, com os dois pés no peito do já amassado “sistema jurídico”: disse que ia mais longe que Camarotti, alardeando que “os corruptos hoje já estão anistiados, porque não existe prisão depois da segunda instância”. Tudo sob o olhar imparcialíssimo de Tralli, o âncora.

Ora, já escrevi aqui e até as pedras sabem que todos os dias centenas de pessoas são presas (ou permanecem presas) depois da decisão de segundo grau, mesmo com a decisão do STF. E por quê? Simples. O STF não proibiu prender depois da segunda instância. Havendo requisitos da preventiva, o réu condenado pode ser preso. Nesse caso, não recorre em liberdade. O STF nunca proibiu a prisão em segunda instância. Fosse verdade isso e bastaria que qualquer condenado a 200 anos interpusesse um recurso e, pronto. Livre estaria.

De novo: O STF nunca proibiu a prisão em segunda instância. Do mesmo modo que em 2016 não tornou a prisão depois da segunda instância como uma coisa obrigatória (só dois ministros votaram nesse sentido — o que gerou a inconstitucional súmula 122 do TRF-4). Aviso aos jornalistas: vão por mim. Acreditem: isto aqui não é (mera) opinião. É fato. E fatos existem. Ao contrário de um certo jornalismo que acredita que só existem narrativas.

Vou repetir. O STF nunca proibiu a prisão em segunda instância. O que se disse foi que é inconstitucional a execução da pena antes do trânsito em julgado. Prisão cautelar segue como sempre foi. O que o STF disse foi que o artigo 283 do CPP vale assim como está escrito.

Pergunto: por que a imprensa — ou parte dela — age desse modo? Quando alguém diz uma bobagem ou uma mentira, há duas alternativas: ou é por ignorância (sou generoso — no sentido de ignorar) ou por má-fé. Tertius non datur (traduzindo: não há terceira alternativa).

O mais “imprecionante” (sic) é que os jornalistas serão os primeiros a reivindicarem a chamada “imprensa tradicional” contra a máquina das fake news e da desinformação. E têm lá sua razão: essas neocavernas de WhatsApp são mesmo uma praga. Mas aí pergunto: adianta fazer uma ode ao jornalismo e promover uma desinformação do nível das correntes que recebo da minha tia semianalfabeta ou do tiozão do churrasco dominical?

Fazer com que a PEC valha para todas as esferas — e qualquer coisa fora disso é uma trampa e quebra da isonomia, diga-se — significa prender empresários na Justiça do Trabalho? Que notícia… Bah. Extra, extra, é tudo um truque do deputado Trad para anistiar corruptos… Pergunto: você vê isso na corrente falsa de WhatsApp ou na GloboNews? Pergunto: Quem disse isso, seu tio no churrasco de domingo ou a elite do jornalismo, responsável pelo bom debate em respeito aos fatos e à verdade? Pois é…

Ninguém da GloboNews, graças a Deus, vai sair fazendo propaganda de cloroquina na televisão. Mas não adianta pedir aplausos por isso e, na sequência, promover o terraplanismo jurídico. Os jornalistas não vão ao ar dizendo que água tônica mata o vírus. Por que é que no Direito isso pode?

Difícil fazer democracia no Brasil. Quem precisa de inimigos?

Post scriptum: por isso tudo é que Juliano Breda, eu e integrantes do Grupo Prerrogativas vamos lançar um livro sobre a “saga da presunção da inocência e as PECs 43, 44 e 54”. Para tentar fazer um bom jornalismo, nós que não somos jornalistas. Compreendem a ironia?

Somos apenas juristas, preocupados com a verdade. E a verdade é fundamental na democracia! Simples assim!

*Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.