Por “incitar a insurreição”, Trump teve o impeachment aprovado pela Câmara dos Deputados, faltando apenas sete dias para o fim de seu mandato.
O Senado ainda vai apreciar a questão, mas a sinalização não podia ser mais clara: o extremista de direita, Donald Trump, precisa ser criminalizado.
O que Trump disse num único discurso, o igualmente extremista de direita Bolsonaro tem dito desde que assumiu o poder.
Por Ângela Carrato, para o Viomundo
Bolsonaro destilou preconceitos e discursos de ódio contra mulheres, negros, índios, gays, professores, artistas, ambientalistas, cientistas e governos de países amigos.
Em dois anos como presidente, deu 2.228 declarações falsas ou distorcidas. Incentivou seus seguidores a invadirem o STF, defendeu o retorno da ditadura, o porte de armas e a tortura.
Todos esses já seriam motivos mais do que suficientes para ser alvo de impeachment.
Se no primeiro ano do governo Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) sentou-se sobre mais de 20 pedidos de impeachment, alegando que não cabia pensar no assunto, a pilha subiu para 61 nesse início de 2021 e Maia continua enrolando.
“Eu acho que esse tema de forma inevitável será discutido pela Casa no futuro”, declarou, frisando que o principal, no momento, é salvar vidas.
O argumento de Maia é tão absurdo quanto alguém, no tempo do III Reich, dizer que era preciso manter Hitler no poder para salvar os judeus. Hitler era exatamente quem estava matando os judeus, como Bolsonaro é o principal responsável pela crise econômica, pelo caos sanitário e pelos mais de 209 mil mortos por covid-19 no Brasil.
O relatório anual do Human Rights Watch (HRW), publicado em 13/1, dedicou um capítulo específico ao Brasil.
Nele, Bolsonaro foi duramente criticado por sua postura em relação à pandemia. Segundo o relatório, as políticas de enfrentamento ao vírus aqui só não foram sabotadas por causa do STF, do Congresso Nacional e da atuação da maioria dos governadores.
Bolsonaro foi apontado, por esse mesmo relatório, como alguém que impulsionou políticas que comprometem os direitos humanos.
A tragédia humana e sanitária que está ocorrendo em Manaus, onde se morre por falta de leitos e de oxigênio, transformou a cidade em capital mundial da pandemia. Manchetes, relatos e imagens estão chocando pessoas em todos os cantos do planeta.
E nada disso teria acontecido se não fosse a nefasta conjunção de um negacionista no governo federal, seus aliados locais, falta de planejamento e incompetência para lidar com a situação.
O Brasil retorna à marca de 14 milhões de famílias na miséria e Bolsonaro descarta continuar com o auxílio emergencial.
O país se tornou um pária no mundo, os brasileiros estão sendo apelidados de “coronas” e várias fronteiras já se fecham para nós.
O que mais precisaria acontecer para Bolsonaro e sua turma serem apeados do poder?
Temer seguiu o roteiro
Tecnicamente não falta nada, nem mesmo tempo. Nos 15 dias que restam a Maia, antes de deixar a presidência da Câmara, bastaria suspender as férias, convocar os parlamentares e pautar o início do processo de impeachment.
O que falta, no entanto, é a classe dominante brasileira, muito apropriadamente chamada de “elite do atraso” e recentemente rebatizada como “elite do saque” pelo sociólogo Jessé Souza, pela rapinagem que vem promovendo no país, encontrar uma saída que lhe garanta a permanência no poder.
Todo o problema reside aí.
O golpe, travestido de impeachment contra Dilma Rousseff, em 2016, tinha objetivos muito claros. Tirar o PT da presidência da República, criminalizar as esquerdas, bani-las do poder e submeter o Brasil aos interesses imperialistas dos Estados Unidos.
Quem se lembra, por exemplo, que as primeiras medidas que Michel Temer (MDB) aprovou foram congelar os gastos com educação e saúde por 20 anos, reformar o ensino médio, tornando obrigatórias basicamente três disciplinas – português, matemática e inglês – e isentar as petroleiras internacionais, que abocanharam o pré-sal brasileiro, do pagamento de impostos?
Para quem tivesse olhos para ver, os contornos da recolonização brasileira já estavam bem desenhados.
Temer seguiu à risca o roteiro que lhe foi traçado. Tanto que nem imagens, áudios, malas de dinheiro e depoimentos ligando-o à corrupção foram suficientes para condená-lo e mantê-lo preso.
Esse vice, que nunca foi decorativo, está cada dia mais atuante e influente na política paulista e nacional. Não só emplacou o companheiro de chapa do prefeito reeleito de São Paulo, o tucano Bruno Covas, como tem no deputado Baleia Rossi (MDB-SP), filho de um dos seus melhores amigos, um dos candidatos à presidência da Câmara.
“Escolha difícil”?
Um golpe que se projetava para durar, no mínimo, duas décadas, não poderia permitir que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disputasse o poder em 2018. Daí a atuação da Operação Lava Jato e do então juiz Sérgio Moro que, de combate à corrupção, não tinham nada.
A Lava Jato foi montada sob os auspícios de setores de poder dos Estados Unidos, com o objetivo de quebrar empresas brasileiras que passavam a incomodar interesses do Tio Sam e para tirar Lula da vida pública. Ambos os objetivos foram alcançados.
A destruição das principais empresas brasileiras, com o fechamento de mais de 400 mil postos de trabalho, gerou a crise econômica na qual o país mergulhou antes mesmo da pandemia. Lula condenado, sem provas, foi preso e impedido de disputar as eleições.
Bolsonaro, então no minúsculo PSL, nunca foi o candidato da classe dominante.
Ela preferia tipos mais limpinhos e cheirosos como Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias ou João Amoedo. Só que eles não emplacaram e terminaram o primeiro turno das eleições de 2018 na vexatória situação de terem recebido menos votos do que o aloprado Cabo Daciolo.
Foi então que, novamente, a estratégia da classe dominante pôde ser vista por inteiro. Através de editoriais, os principais veículos da mídia corporativa brasileira, fundamentais para a vitória do golpe contra Dilma, voltavam à carga lembrando que a opção entre Bolsonaro, um parlamentar medíocre e ex-capitão expulso do Exército, e Fernando Haddad, candidato do PT, professor, ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação de Lula e Dilma, era “muito difícil”.
As fake news, o fingir que nada aconteceu de anormal por parte do TSE e as passadas de pano no golpe pelo STF completaram a fatura.
Bolsonaro não só chegou ao poder, como continua lá.
A “fórmula Biden”
Aparentemente, alguns desses veículos de mídia estão mudando de tom, tentando apagar da memória nacional o papel que tiveram no golpe contra Dilma e na vitória de Bolsonaro. Na prática, deram início a uma nova jogada da classe dominante, que atende pelo nome de “Fórmula Biden”.
Como Trump foi derrotado e pode ser criminalizado, a “elite do saque” também está mudando de lado.
Agora ela cerra fileiras com Biden e sonha com uma solução semelhante para o Brasil. A tal solução seria conseguir ter, em 2022, um candidato “de centro” (leia-se de direita) competitivo para derrotar tanto Bolsonaro quanto nomes da esquerda.
Para a fórmula ser eficiente, é fundamental que Lula continue inelegível. Daí os inexplicáveis adiamentos do STF em julgar a suspeição de Moro.
O maior problema para o sucesso dessa fórmula é obter o tal candidato competitivo, pois os que estão sendo testados – Sérgio Moro, Luciano Huck ou mesmo João Dória -têm se revelado incapazes e com telhado de vidro.
Moro está desmascarado e pode acabar virando réu. Tanto que arranjou um guarda-chuva milionário, ao trabalhar para uma empresa estadunidense de consultoria, uma espécie de recompensa pelos serviços prestados.
Luciano Huck e suas amizades comprometedoras o tem obrigado a apagar quase todas as suas fotos nas redes sociais.
Dória, além de voltar correndo de Miami, administra o estado brasileiro recordista em mortes por covi-19. A vacina pode ser a sua plataforma.
Em outras palavras, a primeira impressão dos defensores menos radicais da “Fórmula Biden” é de que não se deve abrir completamente mão de Bolsonaro, porque podem precisar dele em 2022, caso não consigam um nome capaz de fazer frente à oposição.
Já os “bidianos” mais radicais avaliam a situação de forma diferente. Acreditam que é preciso deixar que a destruição provocada por Bolsonaro continue por mais algum tempo, antes de tirá-lo do poder.
O raciocínio é simples e se baseia na velha máxima do “bode na sala”. Quanto mais desesperados estiverem os brasileiros, melhor, porque se sentirão aliviados pela simples substituição de Bolsonaro, não importa por quem.
E aí vale qualquer método e vale qualquer um, do vice Mourão a um arranjo parlamentarista com Rodrigo Maia, o “queridinho” dos irmãos Marinho e do Grupo Globo.
A “Fórmula Biden”, como o próprio nome indica, teria o sinal verde do “império” e traria implícita a concordância da “elite do saque”, com a continuidade de todo o processo de recolonização que o Brasil está sendo submetido.
Algo como atualizar a triste fala de Antônio Carlos de Andrada, governador de Minas Gerais na República Velha: “façamos a revolução antes que o povo a faça”.
E a “revolução” dos bideanos brasileiros é praticamente manter tudo como está, só que sem Bolsonaro.
O que explica as críticas que a mídia corporativa faz a ele e o apoio que dão à agenda neoliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, ao mesmo tempo em que censuram e continuam banindo dos noticiários as denúncias e as propostas dos progressistas e da esquerda para enfrentar e superar a crise econômica e a pandemia.
Belle époque
Bolsonaro está atendo às manobras dos “bideanos”.
Seus principais suportes continuam sendo parte da classe dominante, as forças armadas e as polícias militares. Os militares, aliás, se mostram muito satisfeitos com as “boquinhas” que conseguiram no governo do ex-capitão.
E é com eles que Bolsonaro espera contar para se manter no poder, não estando descartado nem mesmo um autogolpe, cujas consequências seriam imprevisíveis.
Exatamente por isso, não há parâmetros para se comparar a atual crise brasileira com outras no século XX, a exemplo do suicídio a que foi levado Getúlio Vargas, em 1954, ou o golpe civil-militar contra João Goulart, em 1964.
Em ambos os casos, havia uma intensa disputa política, os Estados Unidos, como sempre, apoiavam soluções antidemocráticas e golpistas, mas havia também uma significativa parte da sociedade brasileira disposta a resistir.
Nos dias atuais, parte da população brasileira se assemelha mais aos tempos da belle époque, que antecedeu à Primeira Guerra Mundial. Vive alegre, aglomerada e comemorando não se sabe o quê.
Já a extrema-direita não perde tempo para manter mobilizada a sua turma, com o auxílio dos templos e pastores neopentecostais.
O que a história brasileira ensina é que, com exceção da Revolução de 1930, todas as demais tentativas de mudança acabaram se dando pelo alto, sob as ordens da classe dominante e com a devida supervisão do Tio Sam.
A chamada “Nova República” arquitetada pelo general Golbery do Couto e Silva e pelo mineiro Tancredo Neves (sempre os mineiros), nada mais foi do que um acordão.
O retorno à democracia se deu com o velho udenista e governista José Sarney, que nem poderia ter tomado posse. Na época, a Constituição brasileira indicava que com a morte do presidente eleito, uma nova eleição deveria ser realizada.
Mesmo tendo introduzido avanços em temas sociais, a Constituição de 1988 deixou intacto o poder dos militares.
O mesmo pode ser dito em relação às corporações midiáticas, uma vez que as mudanças introduzidas no capítulo relativo à Comunicação na Carta Magna, nunca foram regulamentadas.
Fernando Collor, um político oportunista travestido de outsider e a bordo de um partido tão minúsculo quanto o PSL, acabou sendo o primeiro presidente eleito pelo voto direto, com o apoio da Globo, depois de 21 anos de ditadura. Deu no que deu.
O “príncipe” tucano, Fernando Henrique Cardoso não poderia nunca ter sido reeleito. Até porque se o dispositivo da reeleição tivesse sido aprovado em condições limpas, o que não foi o caso, só deveria valer para o pleito seguinte. Mas a elite do atraso ajudou no arranjo e a mídia bateu palmas.
Os 14 anos de PT no poder interromperam o projeto neoliberal de FHC e redirecionaram o Brasil para o desenvolvimento, a inclusão social e a uma posição soberana no cenário internacional. Algo insuportável para a “elite do saque”.
E foi exatamente o tucano Aécio Neves, o neto de Tancredo (outra vez, um mineiro) que deu início ao golpe que continua em processo.
Hora de lutar
O aguçamento da pandemia, com o caos e as mortes enfrentados pela população de Manaus nos últimos dias e a enorme possibilidade que tal situação se repita em outros pontos do país, como já acontece em Mato Grosso, fez com que o #ForaBolsonaro voltasse à agenda dos movimentos populares, dos partidos de oposição e até mesmo ao dia-a-dia do cidadão comum.
Na última sexta-feira e sábado, panelaços tomaram conta das principais capitais brasileiras e há notícias que também em cidades pequenas e médias panelas foram batidas com muita intensidade.
Está prevista para este domingo manifestação pelo impeachment imediato de Bolsonaro, na praça dos três Poderes, em Brasília. Os presentes estarão com máscaras e álcool em gel. Até porque muitos suspeitam que o negacionismo de Bolsonaro tenha a ver com a tentativa de manter seus opositores longe das ruas.
Carreatas igualmente estão sendo marcadas para os próximos dias em todo o país.
Se a direita brasileira se mira em Biden para montar seu esquema político com vistas a 2022, os partidos de oposição têm exemplos de sobra nos quais se mirar entre os países vizinhos.
Argentina, Bolívia, Chile, Equador e Venezuela, cada um à sua maneira, encontraram seus próprios caminhos para se livrar tanto de governos neoliberais quanto de golpes patrocinados pelos Estados Unidos.
A oposição brasileira, sem dúvida, demorou a se mexer. Afinal já são quase cinco anos de golpe. Mas tudo indica que esse início de 2021, que parecia morno, tem tudo para ser dos mais quentes na política nacional.
Até porque, se Bolsonaro continuar no poder, em breve não haverá mais Brasil para se defender e nem brasileiros sadios para lutar contra um governo que é sinônimo de caos, destruição e morte.