“Precisamos construir um Chile coletivo, com direitos e a alegre rebeldia de Allende”, defendeu a atriz Kjesed Faundes, para quem chegou a hora do movimento popular, que derrotou a direita e conquistou a Assembleia Constituinte em julho, vencer as eleições de 21 de novembro e consolidar a justiça social.
Na avaliação da dramaturga e jornalista cultural, a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) “marcou durante muito tempo o povo chileno, e ficamos acumulando raiva a um neoliberalismo extremo, que privatizou tudo. Agora é o momento da superação”. “Tivemos a onda de manifestações e a explosão do movimento estudantil, ao que logo se somou a população em gigantescos protestos nas ruas. Mas aí veio a pandemia, que foi uma desculpa perfeita para o governo de Sebastián Piñera instalar o medo e, por meio do medo, o controle”, denunciou.
Por Leonardo Wexell Severo
Diferente dos regimes de Pinochet ou de Piñera, controlados pelos interesses de uma elite retrógrada atrelada aos Estados Unidos, esclareceu Faundes, “Allende propunha que trabalhássemos coletivamente em prol de uma alegre transformação, que construísse um Estado e um governo para todos”.
De acordo com a atriz, que viveu no Brasil, “os protestos que começaram em Santiago em 18 de outubro de 2019 se deram bastante arraigados no povo”. “Foi a população e não os artistas que começaram a utilizar a arte como forma de expressão, então você via nas ruas um sem-fim de grafites, de desenhos, de colagens e de múltiplas intervenções. Eu fiquei muitas vezes em casa enfrentando a dificuldade de ser mãe de um menino pequeno, querendo participar da revolução, mas com bastante precaução porque a repressão foi muito dura”, assinalou.
“E o governo usou e abusou da força militar”, condenou Faundes, “fazendo com que 3.000 pessoas ficassem feridas, 500 vítimas de trauma ocular e até hoje temos toque de recolher, o mais longo do mundo. Porque a pandemia foi uma desculpa perfeita para tentar manter o controle político, e aí o pessoal do meio artístico teve que se virar”.
Conforme a atriz, o grito de rebeldia foi resultado de uma sequência de provocações que vinham sendo feitas pelo regime, “até que o Ministério do Transporte informou que iria aumentar o preço do metrô em 30 pesos, 20 centavos de real”. “Mas isso, naquele momento, com o país naquele nível de colapso, colocou tudo em ebulição e a juventude começou a pular as catracas dos metrôs. E o povo pela primeira vez em muito tempo deu aval aos estudantes e passou a dizer basta! E isso se transformou numa manifestação social, com uma senhora de idade chegando junto e dizendo chega”. De forma objetiva, sintetizou, “isso expôs também a situação de caos em que se via mergulhado o sistema de previdência social”, inexistente, com as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) pagando aposentadorias cada vez mais miseráveis para enriquecer grandes grupos privados – nacionais e estrangeiros.
Basta de impunidade
Desenvolvendo um trabalho de pesquisa do folclore poético e de estímulo à leitura através do teatro, a jornalista cultural acredita na necessidade de “fazer atos reparatórios de Justiça”, pois “muitos militares responsáveis por torturas e assassinatos, crimes de lesa-Humanidade, estão morrendo impunes”. “Agora há pouco aconteceu o Dia dos Desaparecidos e passamos quase 50 anos perguntando a mesma coisa: cadê, onde estão?”, frisou.
Atriz formada na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile, “que é bem diferente da PUC brasileira, porque recebeu uma intervenção forte da ditadura e até agora é um centro de formação super neoliberal”, Faundes lembra que conseguiu entrar devido a uma bolsa de estudo e “só depois de sair e começar a trabalhar foi que me dei conta de onde tinha estudado e dos privilégios que isso representava”. “Só que a gente foi formado sem um discurso crítico e mesmo que viesse da periferia, da comunidade, das ruas, foi educado para fazer um teatro de elite”, explicou.
“Então senti que era uma dissidência e que era um teatro alternativo que encontrei com a Comédia da Arte, que foi um movimento histórico do renascimento muito crítico e muito influente para o teatro do Shakespeare e do Molière. A Comédia da Arte profissionalizou e possibilitou que o ator vivesse do teatro, abriu pela primeira vez os palcos para as mulheres. Até aqueles anos, 1550, todos os personagens femininos eram feitos por homens caricaturizados. Isso representou uma grande revolução, algo que se ensinava desde a perspectiva histórica na universidade e eu encontrei um caminho para pesquisar”, relatou.
Segundo a atriz, foi só depois de começar a trabalhar com esse foco social, que conseguiu romper as cercas. “A gente ama trabalhar naqueles teatros grandes. Aqui não tem Serviço Social do Comércio (SESC), como no Brasil, apenas espaços extremamente reduzidos e de muita concorrência, o que torna praticamente impossível se apresentar. Dessa forma, acaba sendo sempre para os mesmos espectadores, para uma mesma elite”, declarou. Para romper com este obstáculo, é preciso empenho: “fizemos um trabalho de inserção social, de itinerâncias, de vinculação com literatura. Neste momento, estou fazendo um trabalho com ‘As mil e uma noites’, que começamos a circular no interior dos presídios de mulheres”.
No Chile, explicou Faundes, “a única forma de financiamento da cultura tem a ver com o sistema, com um fundo bastante concorrido que é fomentado pelo Ministério da Cultura, que nasceu há pouco mais de três anos. É uma bagunça enorme”. Concebido no segundo governo de Michelle Bachellet (2014-2018), só veio a ser implementado no segundo governo de Sebastian Piñera (2018 até hoje).
“Então isso representou uma grande derrota porque a gente demorou muito para institucionalizar o Ministério da Cultura e, finalmente, entregamos o tesouro para pessoas descerebradas, sem qualquer vinculação com a cultura. Tanto é assim que na pandemia a ministra falou que investir um peso no setor seria tirar de outros programas de ajuda social. E aí todos os artistas ficaram perdidos, numa grande crise, com todos os espaços fechados, sem poder trabalhar, tentando sobreviver sem apoio, sem nada”, disse.
Para completar o caos, ressaltou a atriz, “Piñera agora nomeou para um alto cargo cultural o prefeito de Santiago, de direita, Felipe Alessandri, que não tem nenhuma experiência como gestor cultural, como pessoa do meio. Esse é o tipo de gente que vai gerir, como mero favor político, o maior centro cultural do Chile. Vale lembrar que Piñera falou que não tínhamos dinheiro para o setor, mas repassou grandes somas a organizações e galerias da arte de pessoas vinculadas à direita e ao conservadorismo, gente que não precisa de recursos”.
Faundes recordou que, “com o fim da ditadura, os fundos concursáveis são uma política instalada para democratizar o acesso aos criadores. Tem muitas falhas, muito pouco orçamento, é 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB), é muito baixo. A gente postula com frenesi obter um trabalho patrocinado pelo Estado, mas finalmente é bastante trabalho por uma mixaria de dinheiro. Aqui não tem o SESC, não há uma lei equivalente à Lei Rouanet. Há também os mesmos problemas: só financiam projetos de marca ou que possam se instalar com um certo discurso político, sem espaço para a diversidade”.
Constituinte e eleições
Faundes avalia que, apesar das limitações, o processo que deu vida à Constituinte conseguiu materializar vitórias expressivas como a “paridade entre homens e mulheres, da mesma forma que a participação de 14 etnias indígenas”. A presidenta da Constituinte, apontou, “é uma mulher indígena, mapuche, Elisa Loncón, e isso faz uma grande diferença”.
A jornalista comemora a correlação de forças amplamente favorável às forças nacionais e populares na Constituinte, “que tem uma grande maioria de centro-esquerda, com uma forte presença de independentes, com os partidos políticos tradicionais sendo rechaçados”. Assim, sintetizou, “o movimento que está aí trabalha principalmente por duas coisas: fazer um Estado maior, mais forte, que dê possibilidade de garantir ao nosso povo direitos que a ditadura retirou, e o selo feminista”.
E foram muitos os direitos retirados pelos neoliberais, descreveu, alguns essenciais como o direito ao trabalho, à saúde e à educação. “No Chile não há uma única universidade gratuita, nenhuma. É tudo privatizado: a saúde, a moradia. Lutamos por um Estado fortalecido, que tem o dever de garantir esses que são direitos humanos”, enfatizou.
Outra questão muito importante, indicou, “se relaciona com a representatividade cultural e diversa do Chile, expressa nas cotas indígenas, que estão procurando construir um país plurinacional. Além disso, é preciso incorporar políticas de igualdade de direitos entre homens e mulheres em todas as áreas. Creio que são esses os grandes pontos”.
“Dentro das coisas mais legais que têm permitido a Constituinte”, comemora Faundes, “é que se torna evidente o desespero da direita, que não tem representatividade, tem fracassado em todas as últimas eleições, até que o candidato a presidente deles ficou em terceiro nas prévias [processo eleitoral para definir as candidaturas], com a esquerda ficando com o primeiro e o segundo lugares”. Na verdade, acredita, “se vê uma necessidade de renovação dos rostos políticos e de fazer outro tipo de política. Mas como te falei, a esquerda também se desarticula com grande facilidade, que é uma crítica que precisa ser feita desde o movimento popular, porque muitas vezes fica difícil nos colocarmos de acordo em questões básicas”.