8 de outubro de 2024

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História, arte e convívio na Praça Vladimir Herzog

Localizada entre a Rua Santo Antônio e o Terminal Bandeira, a pouco mais de 100 metros da sede do SEESP, no bairro da Bela Vista, na região central de São Paulo, a pequena Praça Vladimir Herzog vem lenta e afetuosamente se consolidando como um centro cultural e memorial a céu aberto. O projeto está em marcha desde que o espaço, que se chamava Divina Providência, foi rebatizado, em 2015, por iniciativa do então vereador Ítalo Cardoso, em homenagem ao jornalista assassinado pela ditadura em 25 de outubro de 1975. 

Por Rita Casaro*, no portal da SEESP

Com o apoio da Câmara Municipal, responsável pela gestão da área pública, de artistas, jornalistas e moradores da região, a família Herzog vem trabalhando para concretizar a ideia de um marco urbano como referência para a democracia e os direitos humanos. Já integram o espaço três obras do artista Elifas Andreato: o mosaico “25 de Outubro”, confeccionado por alunos do “Projeto Âncora”, reproduzindo a tela original instalada no auditório do Sindicato dos Jornalistas; a escultura em bronze “Vlado Vitorioso”, encomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para homenagear os jornalistas Zuenir Ventura, Caco Barcellos, Ricardo Kotscho, José Hamilton Ribeiro e Henfil; e o troféu do Prêmio Vladimir Herzog, entregue a jornalistas todos os anos desde 1978. Em 27 de junho último, aniversário de nascimento de Herzog, ficou pronta a “Escadaria da Liberdade”, com a adesivagem de trechos do Hino da Proclamação da República na testa dos 17 degraus que levam à praça.

A banca de jornal nas proximidades, conhecida como dos Jornalistas, também foi adicionada ao projeto como ponto de distribuição de publicações pertinentes à temática da praça e suporte para fixação de cartazes e reproduções de obras de arte. Entre as imagens já ostentadas estão as dos jornalistas vencedores do Prêmio Nobel da Paz em 2021, a filipina Maria Ressa e o russo Dmitry Muratov. 

ObrasElifasAndreatoTroféu do Prêmio Vladimir Herzog, mosaico “25 de Outubro” e escultura “Vlado Vitorioso”, obras de Elifas Andreato já instaladas na praça. Fotos: Beatriz Arruda

A lista dos 1.004

Como a ideia é inaugurar alguma parte do conjunto previsto a cada data de referência, conforme explica o jornalista Sergio Gomes, membro da Associação Amigos da Praça Vladimir Herzog, integrante do Conselho Curador do espaço e grande animador da iniciativa, neste 10 de dezembro, Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o espaço deverá receber placas com os nomes dos 1.004 signatários do documento “Em nome da verdade”. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de fevereiro de 1976, o texto apontava as contradições e fragilidades do inquérito militar produzido sob medida para confirmar a versão do regime no poder à época segundo a qual o jornalista teria se suicidado, e não sido morto sob tortura, como ficaria demonstrado mais tarde. “Esse fato joga luz sobre o que aconteceu com o Vlado e começa a fazer ruir as bases da ditadura”, afirma Gomes.

A lista dos que ousaram se expor e exigir respostas ainda durante o período violento de exceção, conta ele, foi finalmente sistematizada e checada graças a Mauro Malin, que coordenou a sétima edição do livro “Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil”, de Fernando Pacheco Jordão. A obra revista e ampliada, e agora já disponível nas livrarias, teve pré-lançamento durante o evento realizado na praça no dia 23 de outubro último, às vésperas do aniversário da morte de Vlado, marcando mais uma data simbólica.

Entre as atividades, a programação contou ainda com o lançamento de outras publicações, apresentação de músicos, como Gereba Barreto e Paulinho Timor, e poetas populares, aula aberta e piquenique com os estudantes da Escola Municipal Vladimir Herzog, além do plantio de uma muda ginkgo biloba, espécie de origem oriental que no Japão tornou-se símbolo da luta pela vida, após as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ao final da Segunda Guerra Mundial. Prestigiaram a atividade, entre outras personalidades, os vereadores Eliseu Gabriel e Eduardo Suplicy, o jornalista Juca Kfouri e Clarice Herzog, presidente do Instituto Vladimir Herzog. 

Cidade e memória

Para Ivo Herzog, presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e filho do jornalista, a praça cumpre papel importante de resgate histórico. “É um dos poucos monumentos de memória da cidade, especialmente sobre a ditadura. A sociedade tem pouco conhecimento sobre o passado para ensinar as novas gerações e fazer um futuro melhor”, reflete.

Gomes reforça a relevância do papel de resgate, mas não como mero culto ao passado. “É a importância da memória e da história de um ponto de vista do [filósofo] Walter Benjamin, de realizar as suas esperanças”, ressalta.

A vereadora Juliana Cardoso, que ocupa a 1ª Secretaria da Mesa Diretora da Câmara e tem apoiado a iniciativa, faz coro: “A sociedade civil tem feito um trabalho de resistência muito bonito naquele pequeno espaço. Herzog hoje é um símbolo de luta pela democracia, por uma imprensa livre de censura e capaz de produzir justiça social. Neste momento em que a democracia brasileira sofre um processo de corrosão, por dentro das instituições, lembrar dos heróis que deram a vida pela liberdade de opiniões é fundamental.”

Para além da relevância histórica, ela aponta a importância da Praça Vladimir Herzog como mais um espaço aberto de convívio, o que tem sido buscado pela população “com a chegada dessa pandemia terrível”. Ivo Herzog testemunha: “Foi muito interessante como a comunidade adotou aquela praça, ela efetivamente tem vida.”

 

No evento realizado em 23 de outubro, Ivo Herzog, o jornalista Juca Kfouri e o vereador Eliseu Gabriel; a muda de ginkgo biloba plantada no dia; o vereador Eduardo Suplicy, Sergio Gomes (na ocasião em recuperação de uma cirurgia realizada dias antes) e Naomi Morimoto, diretora social do Centro Cultural Hiroshima do Brasil. Fotos: Rita Casaro

Recursos e mobilização

Apesar do reconhecimento, concluir o projeto idealizado esbarra na falta de recursos e entraves burocráticos. Conforme Gomes, a instalação das primeiras obras de arte foi viabilizada por verba orçamentária da Câmara e emendas parlamentares. Já a adesivagem da escadaria saiu graças a doações dos apoiadores. O mesmo deve ocorrer para garantir a instalação das placas reproduzindo as páginas do livro de Jordão com a lista dos 1.004. “Não há tempo para emenda parlamentar”, pontua o jornalista.

Cardoso confirma que o dispêndio previsto atualmente restringe-se aos cuidados de limpeza, jardinagem, manutenção das estruturas e segurança, atividades feitas, afirma ela, com grande dedicação dos funcionários da Câmara, “que amam essa praça e usam muito, para tomar café, socializar, para o tempo de respirar ou mesmo almoçar”.

“É um espaço público sob gestão da Câmara, infelizmente a gente fica à mercê do humor político. Saiu uma verba no ano passado para reforma, mas não foi disponibilizada, parou na burocracia”, lamenta Herzog. Ele se queixa ainda do fato de ter sido gradeada e, portanto, tornada inacessível a área onde se planejava oferecer atenção à população de rua, inclusive com um refeitório. “Aqui a gente cerca os espaços públicos”, critica.

Apesar das dificuldades, Gomes segue em busca de ampliar o apoio junto ao conjunto dos parlamentares do município. “Desde o início, trabalho para que haja um relacionamento com todos os partidos; é uma praça pública, e todos os vereadores que tenham sensibilidade para a coisa podem contribuir.”

Mais um passo previsto precisará envolver outros agentes públicos, já que a Câmara é responsável pela praça até o último degrau da escadaria, mas não pela calçada ao final dela, que precisa de reforma e está na alçada da Subprefeitura da Sé. “Em 19 de fevereiro próximo, aniversário de 48 anos de morte de Solano Trindade, que criou o teatro popular negro na década de 1930, queremos inaugurar o Espaço de Convívio e Expressões em homenagem a ele e a Paulina Chiziane, escritora moçambicana ganhadora do Prêmio Camões neste ano”, informa Gomes. “Com a adesão dos artistas, já temos um teatro a céu aberto, mas que precisa ser refeito”, conclui.

Um mundo de possibilidades

Outra obra prioritária é o painel de azulejos com os nomes de todos os agraciados com o Prêmio Vladimir Herzog, a ser atualizado a cada ano. Ainda sem confirmação, a intenção é concluir a instalação em 7 de abril de 2022, Dia do Jornalista, o que fecharia o conjunto essencial pensado para o memorial. Porém, se depender de Gomes e dos Amigos da Praça, esse é só o começo.

Uma das possibilidades é recuperar e levar ao espaço de alguma forma a pesquisa sobre música da África Austral realizada pelo maestro Martinho Lutero, falecido em 25 de março de 2020, vítima da Covid-19.

O paredão ao fundo da praça pode receber o “Muro das Evocações”, onde seriam retratados, em reproduções estampadas em azulejos, os anseios da geração de Vladimir Herzog. Entre esses, cita Gomes, a luta pela anistia, imortalizada na foto de autoria de Jorge Araújo do histórico ato na Praça da Sé, e o 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, comemorado no Brasil desde 1975, quando o cartaz de divulgação trazia uma gravura de Virgínia Artigas.

Nos planos estão ainda diversas intervenções no entorno da praça, como pontos sem uso da passarela sobre o Terminal Bandeira e o paredão que ladeia a calçada na Rua Santo Antônio. São elas: “Pombas da Solidariedade”; o mural “Personagens dessa história”;  uma galeria de fotos públicas; uma projeção de luz dos quatro Vs, em referência a “Vlado, vida, verdade e vitória”.


Entidades e personalidades do Conselho Curador/Implementador da Praça Vladimir Herzog

Instituto Vladimir Herzog

Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo

Associação Amigos da Praça Vladimir Herzog

Oboré – Projetos Especiais em Comunicação e Artes

Centro Acadêmico Benevides Paixão/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Centro Acadêmico Vladimir Herzog/Fundação Cásper Líbero

Escola da Cidade – Arquitetura e Urbanismo

Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo (IAB-SP)

Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos no Estado de São Paulo (Arfoc)

Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo (SEESP)

Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

Alexandro Fernando da Silva, músico e agente cultural

Aroeira, chargista, artista plástico e músico

Ciro Pirondi, arquiteto e professor

Elifas Andreato, designer, compositor e ilustrador 

Enio Squeff, artista plástico, jornalista, crítico de música e escritor

Giuliano Galli, jornalista

Jorge Araújo, fotógrafo

Juca Kfouri, jornalista

Laerte Coutinho, cartunista e chargista

Luis Ludmer, arquiteto, cineasta e historiador

Marco Artigas Forti, arquiteto e professor

Paulinho Fluxus, light designer, performer e produtor cultural

Paulinho Timor, músico e agente cultural

Samir Salman, médico

Sergio Gomes, jornalista

Silvia Lopes, empresária do setor cultural, educadora, bailarina e diretora

Foto do destaque: Praça Vladimir Herzog. Crédito: Beatriz Arruda

*Rita Casaro é coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé