O Brasil e o mundo assistiram perplexos, neste domingo, a ação terrorista na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Mas a perplexidade não deveria ser acompanhada da surpresa. O que aconteceu neste dia 08 de janeiro estava sendo gestado há meses em grupos bolsonaristas no Telegram, WhatsApp e em vídeos e lives promovidas por canais de extrema-direita no Youtube e Instagram. Todos os sinais estavam explícitos. Pior, a esmagadora maioria dos conteúdos que estavam circulando – ou melhor ainda estão – viola os termos de uso das plataformas e a própria legislação brasileira, por atentaram abertamente contra o Estado Democrático de Direito.
Renata Mielli, jornalista, doutoranda em Ciências da Comunicação (PPGCOM/ECA/USP), coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e membro da Coalizão Direitos na Rede.
Se ainda restava dúvidas sobre a centralidade de uma discussão sobre a regulação dessas plataformas digitais, a devastação ocorrida neste 08 de janeiro evidenciou a urgência da pauta. Fiz um breve fio sobre isso no Twitter durante a noite, que desenvolvo um pouco mais aqui.
1 ?O que aconteceu hoje é o exemplo máximo do porque o debate sobre regulação das plataformas digitais e da comunicação social eletrônica no Brasil é estratégico para a reconstrução da democracia. Os atos terroristas e golpistas de hoje foram articulados nessas plataformas.
— Renata Mielli (@renatamielli) January 8, 2023
Só nos últimos meses, dezenas de notas técnicas, cartas abertas, artigos acadêmicos e outras manifestações procuraram alertar para a centralidade da articulação, organização e mobilização da extrema-direita através dessas plataformas.
Em 25 de outubro, entregamos ao Presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, carta na qual já apontávamos a preocupação com o crescimento dos conteúdos de caráter golpista nas redesna qual já apontávamos a preocupação com o crescimento dos conteúdos de caráter golpista nas redes e a necessidade de haver uma ação consistente de enfrentamento aos atentados contra a democracia no segundo turno e após o resultado da eleição presidencial, caso Lula fosse eleito.
Entre as recomendações centrais, estava a de que era necessário, mas totalmente insuficiente, suspender conteúdos e perfis violadores por ordem judicial. É preciso que as plataformas assumam sua responsabilidade no enfrentamento desses problemas.
Não era premonição, era ciência e estudo dos grupos bolsonaristas e do modelo de negócios das plataformas de redes sociais que estimulam exatamente a circulação de conteúdos de caráter extremistas, somada à completa ausência de regras para o uso dos serviços de mensageria como Telegram e WhatsApp.
Quando afirmo que essas plataformas são o embrião da organização da extrema-direita não significa que se tratam de articulações espontâneas. Não há espontaneidade e nem ingenuidade no que acontece no interior dos grupos e comunidades bolsonaristas, ou nas centenas de canais no YouTube que espalham conteúdos de ataque ao sistema eleitoral ou de questionamento do resultado da eleição ou de mobilização de atos terroristas como os de 8 de janeiro. A estrutura das redes sociais e dos grupos é, de fato, descentralizada entre os vários atores e suas conexões, mas isso não pressupõe falta de hierarquia. O desenho mudou, a hierarquia se distribui de forma dinâmica a partir desses nós. Isso é possível graças ao modelo de negócios das plataformas, que se monetizam a partir do alcance que os conteúdos atingem – seja acionado pelos algoritmos, seja pela compra de audiência via impulsionamento.
Por isso, a discussão da regulação das plataformas é emergencial. Porque é exatamente o modelo de distribuição e recomendação dos algoritmos que dão visibilidade e tração para esses conteúdos. É o modelo de negócios que permite, inclusive, que os movimentos golpistas se capitalizem durante as lives, recebendo recursos via monetização, como mostra o levantamento publicado no próprio dia 8 pela Aos Fatos , denunciando que 23 das 47 transmissões ao vivo de canais de extrema-direita tiveram alguma forma de monetização e atingiram mais de 300 mil pessoas durante o vandalismo na Praça dos Três poderem ontem.
Para burlar possíveis ordens judiciais de derrubada de seus canais no Telegram, os bolsonaristas alteram o nome dos seus grupos. Um grupo importante de articulação, chamado Os Patriotas Br, mudou de nome várias vezes desde o segundo turno das eleições. Ontem durante a tarde foi modificado de novo.
O canal criado no Instagram para receber denúncias de pessoas que participaram dos atos de vandalismo, o Contragolpe, teve seu perfil bloqueado para novas postagens depois de uma ação em massa orientadas nos grupos bolsonaristas para denunciar o perfil no Instagram.
Não dá para dizer que nestes casos, citados como exemplos, as plataformas não são corresponsáveis pelo alcance dos conteúdos e pela articulação golpistas. Parte dessas práticas é reconhecida por elas próprias como violadoras dos termos de uso, e ainda assim continuaram no ar.
A ação de bloqueio e retirada dos conteúdos tem que ser imediata. Duas horas depois, ou 24 horas depois não cumpre mais papel prático. Enquanto escrevo este artigo, pipocam nos grupos bolsonaristas do Telegram a convocação de mais atos democrático no Brasil
O presidente Lula e muitos integrantes do novo governo têm dado declarações de que esse tema será tratado com prioridade. Iniciativas embrionárias vem sendo tomadas no âmbito de alguns ministérios, com diferentes escopos, para iniciar o enfrentamento desse cenário. Na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) foi constituída uma Secretária de Políticas Digitais; o Ministério da Justiça também criou uma assessoria de Serviços Digitais; a Advocacia Geral da União criou a Procuradoria Geral de Defesa da Democracia. São iniciativas importantes, que precisam ser coordenadas de forma a terem sinergia e, principalmente, olharem o problema a partir de uma perspectiva estruturante, da defesa da democracia, do interesse público, da regulação das plataformas e, claro, da responsabilização dos responsáveis pela articulação e financiamento da desinformação, do discurso de ódio e dos conteúdos que atentam contra o Estado Democrático de Direito.
Além disso, é preciso que o Congresso Nacional dê prosseguimento ao debate da regulação das plataformas, iniciado há mais de dois anos, e que tem como abordagem principal o Projeto de Lei 2630/2020, cujo relator é o deputado federal Orlando Silva e que chegou a ter a apreciação da sua urgência para ser votada no Congresso pautada em abril do ano passado. Leia mais aqui.
O Brasil precisa de parâmetros iniciais, consensuados de forma ampla e de preferencia aprovados na forma de legislação, para impor obrigação para a atuação das plataformas e, principalmente, um conjunto de sanções para o descumprimento das mesmas. O golpe fracassado de 8 de janeiro de 2023 é a prova dessa necessidade.