Neste artigo intitulado “Noboa e Milei: tão longe e tão perto”, o escritor equatoriano Juan Paz y Miño Cepeda, vice-presidente da Associação dos Historiadores Latino-americanos e do Caribe (Adhilac), avalia as semelhanças entre o que prometem ser os desgovernos dos presidentes do Equador e da Argentina, recém eleitos e esmiuça o papel dos meios de comunicação em favor das transnacionais. De forma bastante didática, o escritor equatoriano denuncia como, entre outros abusos, a “internacionalização das máfias com capacidade de penetração nos aparelhos de Estado” e o “confronto entre a economia empresarial-neoliberal e a economia do bem-estar social” abrem espaço para que o fascismo ganhe força.
Por Caio Teixeira/ ComunicaSul
Noboa e Milei: tão longe e tão perto?
Juan J. Paz y Miño Cepeda
No contexto geral da história contemporânea da América Latina, gostaria de destacar pelo menos os seguintes pontos para comparar a situação atual entre a Argentina e o Equador.
PRIMEIRO. À medida que o século XXI avança, assiste-se a um processo global de reordenamento das potências centrais: enquanto a hegemonia dos Estados Unidos declina, a China, a Rússia e os países BRICS-Plus estão em ascensão. Como resultado, a América Latina é uma região em disputa, ao mesmo tempo que se projeta lentamente como mais um espaço do Sul Global com as suas próprias definições e estratégias, de mãos dadas com governos progressistas, mas não com os empresários neoliberais.
Nos processos eleitorais, estão em ação não só forças políticas internas, mas também internacionais. O americanismo monroísta não deixou de atuar para “influenciá-los”, porque os EUA estão interessados em governos que respondam positivamente às suas geoestratégias globais e à sua segurança nacional. Além disso, existe uma internacional de direita consolidada, tanto no plano acadêmico como no político, e integrada em fundações e organizações bem financiadas, que também trabalham para o sucesso eleitoral dos seus favoritos.
Naturalmente, o triunfo dos governos da política de direita torna-se uma garantia para os interesses monroístas. Lenín Moreno e Guillermo Lasso enquadram-se perfeitamente nestes interesses. É muito claro que Daniel Noboa e Javier Milei não são anti-imperialistas. Donald Trump e Jair Bolsonaro foram os primeiros a regozijar-se com o triunfo presidencial de Milei. Também não devemos deixar de lado as felicitações que recebeu do Presidente chinês Xi Jinping (https://tinyurl.com/5fdd3s6d). Mas também, no contexto das geoestratégias centrais, são claras as abordagens unificadas do secretário de Estado dos EUA (https://bit.ly/3tbVDGE) e da general comandante do Comando Sul (https://bit.ly/3PWMrzA) sobre a “ameaça” representada pela Rússia e principalmente pela China, além de apontar o papel das alianças militares para combatê-la, no velho estilo do TIAR [Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, datado de 1947 com o objetivo de “impedir o avanço do comunismo”] e do McCarthysmo.
Em todo o caso, estas propostas não agradam aos Estados e aos empresários que criaram relações econômicas com estes países, e chocam também com os governos progressistas que questionam o monroísmo ultrapassado. No entanto, o candidato Milei foi um “negacionista” do que aconteceu durante a ditadura militar (https://tinyurl.com/y5t6ukw7) que implementou o estado terrorista-anticomunista entre 1976-1983, no que coincide com a visão do ex-presidente Bolsonaro sobre o longo período ditatorial civil-militar no Brasil. Mas o Equador não teve ditaduras como as que caracterizaram o Cone Sul. Desde o regresso à democracia em 1979 no Equador e em 1983 na Argentina não houve golpes de Estado militares, embora no Equador tenha havido revoltas lideradas por figuras militares em 1987 e 2000 e pela polícia em 2010, e a “derrubada constitucional” de presidentes em 1997, 2000 e 2005 tenha tido de recorrer, finalmente, à “arbitragem” das forças armadas.
A questão que se coloca é a de saber se haverá um limite direto ou um teto para a instituição militar face às transformações que os governos neoliberais e, mais ainda, os “libertários anarco-capitalistas”, mas também os progressistas de esquerda, querem levar a cabo. O que é evidente é que serão necessárias reformas urgentes das forças armadas e da polícia para enfrentar eficazmente a delinquência e o crime organizado, que afetam a segurança dos cidadãos em toda a América Latina e que respondem à internacionalização das máfias com capacidade de penetração nos aparelhos de Estado. No Equador, o embaixador dos Estados Unidos chegou a referir-se à existência de “narco-generais” (https://tinyurl.com/mrtp68r4), uma questão que permanece no vazio.
SEGUNDO. Os meios de comunicação e de informação são múltiplos e variados com o desenvolvimento da Internet e agora da inteligência artificial; mas a televisão continua a desempenhar um papel político decisivo e nela predominam as empresas privadas com grandes recursos, bem como os jornais e revistas impressos que exigem grandes investimentos.
Esta mídia corporativa defende interesses privados e mantém ligações estreitas com a classe empresarial em geral e com grupos e personalidades da política de direita. Consequentemente, promovem candidatos dessas fileiras e protegem os governantes que as representam. No Equador, promoveram Lasso e Noboa, tal como fizeram com Milei na Argentina, que era um outsider político, mas não um outsider midiático, como salientou Atilio Borón (https://shorturl.at/vCJ47).
O papel da mídia alternativa e das redes sociais, de acordo com os estudos existentes, divide-se, porque atuam em função das candidaturas e ações governamentais, embora adquiram um significado quotidiano que se torna contundente, o que tem sido decisivo, por exemplo, no apoio que através deles se difunde às causas dos movimentos sociais. Em todo o caso, a convergência de elites transformou-se em blocos de poder que, com acesso governamental ao Estado, o subordinam ao seu serviço.
No Equador, este bloco conseguiu unificar-se com o governo Moreno e dominou com o governo Lasso. A forte ligação entre os meios de comunicação social e os políticos empresariais difundiu uma “cultura” que generaliza as ideias neoliberais e ganha peso até entre as classes médias e os setores populares, favorecendo o voto em figuras como Lasso, Noboa ou Milei.
As reações à inépcia governamental de Lasso dividiram temporariamente o bloco de poder que o apoiava: reduziram-se os apoiadores, uma parte distanciou-se dele e hoje o critica, enquanto outra parte decidiu questionar e até atacar o presidente Noboa pelo acordo parlamentar com o correísmo. No entanto, é possível que ocorra uma reunificação de forças se Noboa mantiver o modelo empresarial neoliberal e oligárquico ou se for dada prioridade à convergência da direita para evitar, mais uma vez, o regresso do “correísmo”, considerado o principal inimigo.
Nestas fileiras, também não se escondeu a satisfação com a vitória de Milei e, de fato, Verónica Abad, vice-presidente de Noboa, difundiu as suas convicções “libertárias” em plena campanha eleitoral e de forma independente, questionando a existência de “direitos” como a educação e a saúde (https://shorturl.at/EGLOP) ou defendendo a privatização da seguridade social (https://shorturl.at/dyLXY). Logo que tomou posse, o presidente Noboa ordenou (Decreto n.º 27), de acordo com a Constituição, que a única função do vice-presidente fosse “colaborar para a paz e evitar a escalada do conflito entre Israel e a Palestina”, esclarecendo: “Para o desempenho destas funções, a vice-presidente estará no gabinete da Embaixada do Equador em Telavive” (https://shorturl.at/buNUY), o que tem levado a especulações sobre um “divórcio político” já visível antes das eleições.
TERCEIRO. Os fundadores do neoliberalismo apresentaram ideias parcialmente aplicáveis e seguidas nos mesmos países de origem, mas foram reconhecidos (Friedrich von Hayek e Milton Friedman receberam o Prêmio Nobel) por se dirigirem contra o “comunismo”. Hayek, no debate com Keynes, privilegiou a “liberdade” em detrimento do suposto “estatismo” do seu detrator. Mas o neoliberalismo só penetrou na América Latina quando os “Chicago Boys” o introduziram com a ditadura militar de Augusto Pinochet no Chile. Foi imposto à custa do sangue de milhares de “comunistas”. Nos anos 80, foi introduzido com o FMI e as suas “cartas de intenção”, que condicionavam o pagamento das dívidas externas da região. O neoliberalismo foi abraçado pelas burguesias latino-americanas como a ideologia em que se baseavam os seus interesses econômicos tradicionais. Hoje em dia, a direita política da região, apesar das suas diferenças e nuances, concorda com um punhado de slogans econômicos: não intervenção do Estado, ausência de impostos, trabalho regulamentado, privatização de bens e serviços públicos, mercados livres, abertura indiscriminada ao capital estrangeiro.
Mas a experiência histórica do neoliberalismo é diferenciada: nos Estados Unidos, conduziu à desindustrialização, a uma maior concentração da riqueza e ao reforço do poder das empresas, como sublinhou Joseph Stiglitz em Capitalismo Progressivo. Na Europa, o Estado de Bem-Estar Social não foi completamente desmantelado e os serviços públicos universais nos domínios da educação, da saúde e da segurança social continuam a existir atualmente.
Na América Latina, foi assimilado um neoliberalismo distorcido, através do qual se interpretou o modelo econômico norte-americano, ídolo de um mercado supostamente “livre” para tudo. Mas tanto a Europa como os EUA têm Estados fortes com enormes capacidades econômicas. E na Europa há impostos elevados para sustentar os serviços públicos. Já na América Latina, a experiência “neoliberal” foi desastrosa durante as últimas décadas do século XX, incluindo o Chile, o país exemplar do modelo. Vários estudos, como os da CEPAL, demonstram este fato. Por todo o lado, as condições de vida e de trabalho não foram resolvidas e o “quadro de subdesenvolvimento” persiste em todos os países.
Essas condições determinaram o surgimento do primeiro ciclo de governos progressistas no início do século XXI, seguido por um período de governos conservadores e neoliberais e, depois, apenas alguns governos do segundo ciclo progressista. No Equador, o desastre neoliberal não foi apenas econômico, mas também se refletiu na crise institucional e governamental: entre 1996 e 2006 houve sete governos, uma ditadura noturna e os três presidentes que emergiram de eleições populares foram derrubados.
O governo de Rafael Correa (2007-2017) colocou o país no caminho para uma economia social de Bem Viver, e os resultados positivos deste progresso também se refletem nos relatórios nacionais e internacionais. Foi por isso que Lenín Moreno triunfou em 2017, então promovido por Correa, mas que imediatamente o traiu e reviveu o modelo neoliberal-empresarial. Lasso, banqueiro e milionário, presidiu o “Equador Livre”, um grupo de reflexão “libertário anarco-capitalista” de onde saíram também vários dos seus ministros e altos funcionários, pelo que consolidou o caminho reposto por Moreno.
Os resultados sociais do governo de Lasso são desastrosos, incluindo o desenvolvimento da delinquência e do crime organizado, sem precedentes na história nacional e consequência do “encolhimento” das capacidades do Estado, que arrastou consigo as da segurança interna. A tal ponto que “Lasso é um fracasso” (frase muito utilizada nas redes), que teve de recorrer ao mecanismo constitucional da morte cruzada para evitar a impugnação na Assembleia e a sua destituição; deixou o poder como o presidente mais mal avaliado do país (15% de aprovação) e da América Latina (CID-Gallup) e despediu-se afirmando “entrei como um liberal em matéria econômica e saio como um social-democrata que respeita a democracia” (https://shorturl.at/ahsJX).
Poderá acontecer o mesmo com o presidente Milei? Em contrapartida, o novo presidente Noboa, pelo menos no seu programa, admite certos serviços públicos. Mas Milei não só falou na sua campanha sobre a privatização de tudo, como anuncia que a saúde e a educação devem passar para as mãos privadas e que os argentinos devem pagar por elas. Se Milei for tão bem-sucedido como os seus eleitores esperam que seja, toda a América Latina será inundada pela experiência argentina e ele parecerá incontrolável. O problema é que não há um único Estado no mundo capitalista que tenha aplicado os princípios “anarco-capitalistas”, nenhum poder central estrangulou o Estado como acreditam os neoliberais latino-americanos, e as experiências históricas desastrosas destas ideias estão na ordem do dia em qualquer país da região que se escolha estudar.
QUARTO. Entre os movimentos sociais do Equador, o movimento indígena é o mais forte e organizado, mesmo na América do Sul (juntamente com a Bolívia), enquanto o movimento operário é fraco e muito dividido. Ambos tinham dirigentes que, guiados pelo seu anti-correísmo fanático, apoiaram Moreno. Posteriormente, os votos destes setores contribuíram para o triunfo de Lasso em 2021, em particular na Serra e na Amazônia, para impedir a vitória do “correísta” Andrés Aráuz. O mesmo não aconteceu com Noboa, pois grandes setores indígenas votaram em Luisa González (https://shorturl.at/xAP59). Em todo o caso, o movimento indígena teve jornadas de luta fundamentais e as mobilizações de 2019 e 2022 contaram com um amplo apoio popular.
Moreno e Lasso recorreram à repressão, líderes foram processados e o protesto social também foi criminalizado. No entanto, o Pachakutik, o partido indígena, não tem força eleitoral. O país também não tem partidos sólidos e grandes, com exceção da Revolución Ciudadana (correísmo) e, em certa medida, do partido social-cristão de direita, atualmente em declínio. De acordo com um estudo recente de Cantú-Carreras sobre as preferências eleitorais na América Latina, na ausência de partidos institucionalizados, os eleitores não votam por razões ideológicas, mas em candidatos que os cativam subjetivamente (https://shorturl.at/eDPY2). Foi o que aconteceu com Noboa, que atraiu votos até pelo fato de ser “novo” e “jovem”.
Há também, sem dúvida, uma reação nacional contra os velhos políticos e a velha política, especialmente entre as novas gerações, que não experimentaram o progressismo da década presidencial de Rafael Correa. Mas na Argentina não existe um movimento indígena que se assemelhe ao equatoriano e, em contrapartida, os sindicatos têm tradição e força, e o peronismo, o radicalismo e outros partidos também têm uma presença histórica. No entanto, Milei também não foi votado por razões ideológicas, mas sim como reação aos “maus” resultados do governo de Alberto Fernández, segundo vários analistas, e também contra a velha “casta” política, continuamente atacada pelo verbalismo discursivo de Milei. Foi tudo isto que mobilizou o voto dos jovens. Mas, no Equador e na Argentina, há um setor social que o partidarismo e o movimentismo negligenciaram: a população desempregada e subempregada (no Equador, 65% da PEA), na qual tanto Noboa como Milei captaram votos, representando o desespero por uma “mudança” que só parece possível com “novas” personalidades.
Muitas conclusões podem ser tiradas dos pontos acima referidos. O que pretendo sublinhar é que o neoliberalismo, e muito menos o “libertarismo”, não conseguirá resolver os problemas históricos da América Latina. Não vejo como Noboa, que pertence ao grupo econômico mais rico do país, possa ter sucesso em um ano e meio de administração sem mudar a matriz empresarial-neoliberal afirmada pelos dois governos anteriores nos últimos seis anos. E se tudo correr bem na Argentina, e o sonho paradisíaco da iniciativa privada sem Estado for finalmente alcançado, o país também será cercado pelo inferno dos que não poderão comprar educação, saúde ou previdência social, nem bens fundamentais para uma vida digna e de bem-estar. Na América Latina, o capitalismo nunca funcionou como nos países centrais. Nesta região, durante o século XXI, intensificou-se o que Karl Marx chamou de luta de classes, que a médio prazo histórico se expressa no confronto entre a economia empresarial-neoliberal e a economia do bem-estar social. O que está a tornar-se cada vez mais agudo é que, para reimpor o neoliberalismo, o fascismo está ganhando força.