Para o coordenador de relações exteriores em Gaza, Dr. Basem Naim, transmissão de genocídio em tempo real desmascara narrativas sobre Israel.
Por Felipe Bianchi*
Tudo mudou após o 7 de outubro de 2023. Sob o pretexto de revidar ataque promovido pelo Hamas, Israel decidiu acelerar seu projeto de ocupação colonial do território palestino e acionou violência máxima para levar a cabo uma espécie de “Solução Final” na região.
Gaza está destruída e, até o momento, mais de 35 mil palestinos foram mortos. O sistema de apartheid que segrega e humilha a população também em regiões como a Cisjordânia e Jerusalém foi intensificado.
Mais de 140 jornalistas assassinados no período Gaza transformaram o local no terreno mais letal para a categoria em toda a história moderna, superando rapidamente a contagem de corpos durante a Segunda Guerra Mundial, com 69 baixas, e os conflitos no Vietnã e sudeste asiático, com 63.
Além disso, somente até janeiro de 2024, mais de 73 redações e sedes de meios de comunicação foram danificadas ou destruídas completamente – até mesmo a Al Jazeera, um dos principais veículos de comunicação árabes, está sob censura.
Apesar da transmissão em tempo real de diversos crimes contra a humanidade e a flagrante intolerância à liberdade de expressão, a mídia corporativa ocidental segue fiel aos discursos do sionismo, liderado por Benjamin Netanyahu. A adesão praticamente automática ao discurso que propagandeia Israel como “a única democracia do Oriente” não diz respeito apenas aos grandes veículos e agências transnacionais, mas também à maioria dos meios dominantes no Brasil e na América Latina.
Nesta entrevista concedida em 11 de maio, em Joanesburgo, na África do Sul, o presidente da Comissão de Relações Exteriores de Gaza, Dr. Basem Naim, fala sobre a negociação para encerrar a guerra, o xadrez geopolítico da comunidade internacional e a importância da mídia independente e dos comunicadores populares que expõem ao mundo os horrores praticados pelo sionismo.
Ex-Ministro da Saúde em Gaza, Basem Naim também abordou questões como a destruição sistemática da infraestrutura hospitalar na região e a situação da população palestina após sete meses de carnificina que indiscrimina crianças, mulheres e até mesmo voluntários de organizações não-governamentais estrangeiras.
Felipe Bianchi – Há um grande esforço por parte do povo palestino e das forças políticas no país para alcançar um cessar-fogo imediato. Ao mesmo tempo, Israel segue avançando sobre Rafah. É possível esperar algum tipo de decisão ou posição civilizada partindo do governo de Netanyahu neste sentido?
Dr. Basem Naim – Expressamos de forma clara a nossa opinião desde o primeiro dia: defendemos um cessar-fogo imediato para pôr fim a este genocídio contra o nosso povo. E quando os mediadores entraram em contato conosco, sustentamos essa posição com muita firmeza.
Somos a favor de parar este genocídio, incluindo um acordo sobre reféns e prisioneiros, pois queremos chegar a uma solução política para este conflito. Infelizmente todos sabem desde o princípio, incluindo os negociadores e mediadores, que Benjamin Netanyahu não está disposto a selar acordo algum. Netanyahu não aceita o cessar-fogo porque sabe que se isso acontecer, no dia seguinte amanheceria na prisão, sendo responsabilizado pelo fracasso de tudo o que vem ocorrendo desde o dia 7 de outubro.
Assumimos muitos compromissos e fizemos muitas concessões para conseguir um cessar-fogo. Aceitamos um acordo costurado com diversos mediadores: estadunidenses, egípcios, cataris, e infelizmente, Netanyahu e o seu governo rejeitaram qualquer proposta. Pior que isso, depois da negociação, ainda atacaram Rafah e hoje agridem 1,3 milhão de palestinos que estão no local, após pedirem que abandonassem a parte norte de Gaza Faixa e a zona intermediária em direção a Rafah por se tratar de uma “zona segura”.
Esses 1,3 milhão de palestinos em Rafah estão sob massacre sem qualquer tipo de proteção. O mundo assiste e observa a matança de palestinos sem fazer nada. Esperamos que possamos alcançar em breve um cessar-fogo para acabar com este genocídio. Porém, mais uma vez, temos a certeza de que sem uma pressão externa que parta dos Estados Unidos, da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Conselho de Segurança, da comunidade internacional e sem um conjunto de ações que imponham pressão sobre Israel e o governo fascista de Netanyahu será muito difícil alcançar um cessar-fogo a curto prazo.
Felipe Bianchi – Qual a importância da solidariedade internacional neste momento histórico da Palestina e que figuras como Lula e Gustavo Petro, presidente da Colômbia, saiam em defesa da Palestina, com declarações e, sobretudo, com ações concretas? Há decepção com a omissão de tantos países poderosos do Ocidente ou o silêncio e a cumplicidade já eram esperados?
Dr. Basem Naim – É preciso entender que Israel é uma criatura inventada pela chamada comunidade internacional, especialmente das potências coloniais ocidentais, de construir um projeto que defenda os interesses coloniais ocidentais na região. Sem este apoio das potências coloniais ocidentais, Israel sequer existiria.
Claro que a solidariedade internacional e a narrativa a nível internacional são cruciais e muito importantes para apoiar a causa da Palestina, porque sem este apoio internacional não conseguiremos derrotar o projeto colonial. Consideramos importante qualquer apoio de governos e seus mandatários, como o presidente brasileiro Lula ou o presidente colombiano Gustavo Petro, assim como o de ativistas, ONGs e mídias independentes. É um apoio fundamental.
Apesar disso, é preciso dizer que talvez esperássemos mais apoio da comunidade internacional. Depois de sete meses, mais de 35 mil pessoas foram mortas, sendo em sua maioria crianças e mulheres. Hospitais têm sido destruídos, assim como templos religiosos. E até agora não vimos ações sérias para impedir este genocídio. Ok, temos aqui algumas palavras bonitas, declarações, mas pouca ação.
Precisamos de ações para parar imediatamente este genocídio e procurar uma solução política para este conflito. Caso contrário, será uma questão de tempo até termos o próximo genocídio. Desde 1948 passamos por genocídio após genocídio, genocídio após genocídio. É importante vermos o posicionamento favorável e declarações de apoio ao povo palestino, mas agora é a hora de agir para acabar já com esse genocídio. É tempo de ações, não de palavras.
Felipe Bianchi – A narrativa estratégica do sionismo parece dominar a mídia hegemônica ocidental. No Brasil, há casos de perseguição contra jornalistas que defendem a causa palestina, isso quando os profissionais têm alguma liberdade para opinar. Qual a importância das mídias independentes e dos comunicadores populares na cobertura em tempo real do que acontece hoje em seu país? É possível disputar a narrativa?
Dr. Basem Naim – Nunca, em momento algum, pedimos a qualquer jornalista que adotasse a nossa narrativa sobre o Hamas ou a luta do povo palestino. Pedimos a todos os jornalistas que apenas visitem Gaza, que visitem a Cisjordânia ou Jerusalém e testemunhem a realidade. Não precisamos que ninguém minta em nosso nome. Só pedimos aos jornalistas que venham até Gaza, tirem suas fotos, gravem seus vídeos e reportem o que virem.
Em segundo lugar, se os israelenses e seus sócios midiáticos têm tanta certeza e confiança assim em sua narrativa, tudo bem. Mas então pedimos, por favor, que permitam a todos os jornalistas viajarem até Gaza e verem com os seus próprios olhos o que está acontecendo na região.
Graças aos jornalistas independentes e aos jovens ativistas que atuam nas redes digitais conseguimos minar e desmascarar uma narrativa que vem sendo construída durante décadas pelo sionismo e seus aliados. Somente com a ajuda desses cidadãos, pessoas independentes, críticas e de mente aberta, está sendo possível reverter esse quadro.
Muitas pessoas do Ocidente estão descobrindo somente agora que foram enganadas durante todo esse tempo pelos meios de comunicação de seus próprios países. Muitos vêem com clareza que é o seu dinheiro, através do pagamento de seus impostos, que está sendo empregado no apoio a um governo que, em nome deles, comete um genocídio e promove a matança de civis, de crianças e mulheres.
Por isso, sim, apreciamos imensamente o corajoso trabalho dos jornalistas independentes, dos jovens comunicadores, dos ativistas das redes digitais. Eles todos têm sido fundamentais para transmitir ao mundo a mensagem e a verdade sobre que ocorre com o povo palestino.
Reitero que não pedimos a ninguém que adote cegamente a nossa narrativa, mas que venham para Gaza, Cisjordânia e Jerusalém e fale com os palestinos nas ruas. Que vejam com os seus próprios olhos o verdadeiro apartheid promovido por um regime fascista. Venham com uma posição neutra. Não pedimos a ninguém que seja tendencioso em nosso favor. Que seja apenas neutro.
Acreditamos que a existência do Estado de Israel depende de dois pilares fundamentais. Um é interno, ou seja, a economia e as forças militares israelenses. O outro é a narrativa e a questão do apoio internacional.
O apoio internacional é baseado e construído em todas essas mentiras que repetem que Israel é o país mais civilizado da região, que Israel está representando e promove os valores do Ocidente, que é a “democracia mais vibrante” do Oriente. O que ocorre é que muitas pessoas do Ocidente estão chegando à conclusão de que isso tudo é falso.
Você pode imaginar que numa guerra que se iniciou no dia 7 de outubro, mais de 13 mil crianças foram mortas e mais de 10 mil mulheres foram mortas? Esta é a primeira vez na história que há mais mulheres e crianças mortas em uma guerra do que homens. Normalmente, na história, 90%, 80% dos mortos são homens. Nesta guerra, pela primeira vez, mais de 75% são mulheres e crianças. E não para por aí. Israel matou mais de 5.000 embriões em centros de fertilização in vitro. Estamos falando de um Estado que mata vidas em tubos.
Em síntese, os meios de comunicação e o jornalismo podem ser ferramentas muito úteis para proteger vítimas inocentes e denunciar genocídios, mas também, se você perder a sua consciência, pode se deparar com essas ferramentas sendo usadas para apoiar o genocídio e o apartheid.
Felipe Bianchi – Há uma escalada recorde no assassinato de jornalistas em Gaza e nas violações à liberdade de expressão por parte de Israel. A mídia hegemônica ocidental, porém, segue firme na sua campanha de difamação do Hamas como forma de justificar o genocídio que está sendo levado a cabo por Netanyahu, sem tocar no tema citado. Como você enxerga o papel jogado pelos meios de comunicação neste momento?
Dr. Basem Naim – Israel colocou como alvo intencional, desde o primeiro dia, todos os jornalistas, a começar por terem impedido qualquer repórter estrangeiro de entrar em Gaza. A principal razão é óbvia: eles querem cometer todos esses crimes sem serem flagrados e expostos, da mesma forma como fizeram em 1948, na primeira Nakba (a “catástrofe palestina”), quando cometeram muitos crimes de limpeza étnica, promovendo matanças sem os devidos registro e documentação.
Eles querem seguir cometendo todos esses assassinatos e abusos sem testemunhas oculares, muito menos jornalistas. Para isso, não somente impedem a entrada de jornalistas de fora, mas também miram e executam profissionais de mídia em Gaza – já são mais de 140 mortos.
A questão da comunicação e da censura se dá pelo fato de que a narrativa é o pilar central da estratégia de ocupação colonial. Israel construiu com seus aliados, em especial os estadunidenses e a mídia mainstream ocidental, uma narrativa sobre sua existência que converte o agressor em vítima. Na mídia dominante, os israelenses são vítimas e as vítimas de seu projeto colonial são os agressores.
O jornalismo comprometido com a verdade, os comunicadores populares e os ativistas digitais são uma ameaça estratégica para a narrativa que impuseram durante décadas. O que restou para eles, diante das imagens de corpos carbonizados e da destruição de hospitais, igrejas e mesquitas, é a mentira e a desinformação.
Felipe Bianchi – Qual a sua avaliação, tendo sido ministro da Saúde em Gaza, sobre esse tema antes e depois do 7 de outubro? Com a destruição de hospitais e de infraestrutura, além do massacre que o mundo está testemunhando, a situação que já era complicada parece ter piorado drasticamente.
Dr. Basem Naim – O setor da saúde antes dos ocorridos no dia 7 de outubro já se encontrava em uma situação desastrosa. Claro que de lá para cá, se agravou, mas já era um quadro bastante crítico.
Estamos falando de falta de medicamentos, falta de equipamentos, falta de eletricidade e todas as outras necessidades da infraestrutura de saúde. Além disso, há uma restrição de mobilidade das pessoas em Gaza para fora da Palestina, já que muitos precisam urgentemente de tratamento no exterior.
São milhares de pessoas que nunca obtiveram autorização por parte de Israel para que saíssem de Gaza, da Cisjordânia ou de Jerusalém para receber tratamento em outros lugares. Uma situação que, após o 7 de outubro, passou a ser catastrófica.
O que ocorre em Gaza no campo da saúde configura os crimes de Israel como genocídio. Desde o primeiro dia, começaram a atacar hospitais, clínicas e profissionais da área. Hoje, na parte norte da Faixa de Gaza, todos os hospitais e todas as instalações médicas estão destruídas completamente. Na parte sul, parte significativa das instalações médicas estão destruídas e os poucos hospitais que ainda funcionam estão sobrecarregados pela pressão de tratar milhares de feridos.
A população que procura ajuda para doenças regulares como hipertensão, diabetes e, em especial, mulheres gestantes, está desamparada diante desse quadro. Além disso, são muitas novas doenças infecciosas que surgiram nesses últimos meses em na região.
Gaza está sob bloqueio quando falamos de falta de remédios, falta de combustível, falta de energia elétrica, falta de equipamentos. Também estamos enfrentando uma situação drástica com mais de 400 médicos assassinados e cerca de outros 400 presos pelos israelenses. Alguns deixaram a Faixa de Gaza com as suas famílias.
É uma situação de catástrofe. Para se ter ideia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou recentemente que se a agressão israelense parasse neste exato momento, 25% dos palestinos em Gaza ainda poderiam morrer devido às doenças e falta de tratamento adequado.
*Felipe Bianchi é jornalista do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e da Agência ComunicaSul de Comunicação Colaborativa