21 de novembro de 2024

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Eleições nos EUA, a democracia em que o povo não tem voz

Foto original: Elvert Barnes

Você certamente sabe quem são Donald Trump e Kamala Harris – mas é provável que jamais tenha lido ou ouvido qualquer referência a nomes como Jill Stein, Chase Oliver, Claudia De La Cruz e Cornel West. Todos eles disputam, na próxima terça-feira (5), a 60ª eleição presidencial nos Estados Unidos.

André Cintra | Vermelho

Em tese, qualquer um desses candidatos pode suceder a Joe Biden a partir de 20 de janeiro de 2025 – data da posse do próximo presidente norte-americano. Mas é apenas em tese mesmo. Na prática, Kamala e Trump são os únicos com chances de chegar à Casa Branca.

A exemplo do que ocorre desde 1852, dois partidos – o Democrata e o Republicano – dominam a política norte-americana, revezando-se no poder. Em 2016, quando o republicano Trump venceu a democrata Hillary Clinton, as duas legendas, tiveram, juntas, 94,3% dos votos válidos. Quatro anos depois, quando Biden, do Partido Democrata, derrotou Trump, a hegemonia foi ainda maior: 98,3%.

Celebrados como a mais antiga e tradicional democracia do Planeta, os Estados Unidos promovem eleições nacionais em que o povo praticamente não tem voz. Desde 1992, quando o candidato independente Ros Perot alcançou 18,9% dos votos, as candidaturas alternativas à polarização apresentam desempenhos eleitorais inexpressivos.

Na corrida presidencial deste ano, a baixa votação é esperada por todos os coadjuvantes – que, no entanto, se posicionam de modo mais avançado que Kamala e Trump em diversas pautas, sobretudo na política externa. Em comum, a médica Jill Stein (Partido Verde), o ativista Chase Oliver (Partido Libertário), a líder comunitária Claudia De La Cruz (Partido para o Socialismo e a Libertação) e o filósofo Cornel West (independente) defendem o fim do genocídio em Gaza.

Diferenças pontuais

A rivalidade entre democratas e republicanos conduz a uma questão histórica inevitável: afinal, qual dos dois partidos foi, é e será melhor para os Estados Unidos e para o mundo?

Antes de cravar qualquer resposta, convém lembrar o historiador britânico Eric Hobsbawm, que notava um contraste essencial entre União Soviética e Estados Unidos. Segundo Hobsbawm, figuras como Vladimir Lenin e Stalin foram decisivas para transformar a história e definir os rumos sociais, políticos, econômicos e culturais da Rússia. A cada um desses líderes, devemos muito do que, pelo bem ou pelo mal, entendemos da experiência socialista no século 20.

Nos Estados Unidos, porém, qual terá sido o último presidente que alterou de fato o sistema? Hobsbawm sugere Abraham Lincoln, cujo governo, na longínqua década de 1860, marcou época com iniciativas como a abolição da escravatura, a Lei de Terras (Homestead Act), a expansão da Marcha para o Oeste e a aposta na industrialização.

Mas é consenso que, com uns ou outros, democratas ou republicanos, liberais ou conservadores, os Estados Unidos jamais deixaram de ser uma nação essencialmente capitalista e imperialista, com sua controversa democracia bipartidária. Discursos e propostas à parte, nem Kamala nem Trump mudarão, se eleitos, a natureza do Império, embora certos setores progressistas simpatizem, ingenuamente, com a “onda Kamala”.

As diferenças ideológicas e políticas entre os dois partidos são pontuais – por exemplo, em temas como direitos civis, posse de armas, aborto e legalização das drogas. Essas distinções ficaram um pouco mais acentuadas com a ascensão de Trump, que empurrou o Partido Republicano para a extrema-direita, em linha com o movimento neoconservador internacional.

E os comunistas?

As dificuldades para se contrapor aos maiores partidos do establishment, somadas aos orçamentos bilionários de uma campanha presidencial, criam um círculo vicioso. Será que as demais agremiações não lançam candidaturas competitivas porque não têm força ou relevância política? Ou continuam pequenas, sem expressão nacional, porque não conseguem viabilizar projetos eleitorais mais populares?

Veja-se o centenário Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA), fundado em 1919, no rastro da Revolução Russa. Por duas vezes, a legenda chegou a lançar uma chapa presidencial que tinha como candidata a vice a filósofa e ativista Angela Davis, uma de suas militantes mais populares. O resultado foi pífio: 0,05% dos votos válidos em 1980 e 0,04% em 1984 – os dois pleitos foram vencidos pelo republicano Ronald Reagan.

Hoje, a prioridade dos comunistas – que decidiram não lançar presidenciável – é derrotar Trump e seu “projeto fascista”. Entre outras medidas, a agenda eleitoral do CPUSA, batizada de “Plataforma 2024”, cobra a taxação dos mais ricos, a assistência médica universal e gratuita, a anistia às dívidas estudantis e a retomada das cotas raciais.

No capítulo dedicado aos direitos dos trabalhadores, o partido defende o fortalecimento dos sindicatos e das negociações coletivas, a revogação de leis antissindicais e o aumento do salário mínimo por hora (congelado desde 2019). É uma pauta em que o CPUSA tem mais afinidades com o Partido Democrata.

Unilateralismo

Nem por isso houve uma aproximação maior, ao longo da campanha, com Kamala Harris, que não fez acenos concretos e ousados à classe trabalhadora. Além disso, os comunistas defendem o cessar-fogo imediato em Gaza e o fim do bloqueio a Cuba – bandeiras que não estão na pauta de nenhum dos presidenciáveis que protagonizam a corrida presidencial deste ano.

Quando Biden desistiu da reeleição e abriu vaga para a candidatura de Kamala, o Partido Comunista não passou recibo. “Não tem grandes diferenças. É a mesma ideologia, o mesmo genocídio em Gaza, a mesma guerra por procuração contra os interesses russos, a mesma pressão contra a China”, disse ao Brasil de Fato Danny Shaw, dirigente do CPUSA. “É o modelo falido do unilateralismo. Eles querem hegemonia onde quer que seja, eles têm medo do mundo multipolar.”

No Brasil, o presidente Lula (PT) torce pela candidata do Partido Democrata. “Kamala Harris, ganhando as eleições, é muito mais seguro para a gente fortalecer a democracia nos Estados Unidos”, declarou Lula nesta sexta-feira (1) à emissora francesa TF1+. “Vimos o que foi o presidente Trump, aquele ataque ao Capitólio – uma coisa que era impensável acontecer nos Estados Unidos, porque se apresentavam ao mundo como modelo de democracia. E esse modelo ruiu.”

O discurso de encerramento da campanha de Kamala foi nessa rota. “Esta eleição é mais que uma escolha entre dois partidos e dois candidatos diferentes. É uma escolha a respeito de o país ser enraizado na liberdade para todo americano ou governado pelo caos e pela divisão”, afirmou a presidenciável.

Um rival autoritário e imprevisível como Trump – que, neste ano, intensificou os ataques aos imigrantes – dá margem à denúncia dos riscos à democracia norte-americana. Mas convém lembrar: foi sob um governo democrata, o de Biden, que os Estados Unidos se envolveram a fundo na guerra na Ucrânia e nos conflitos no Oriente Médio. Seja qual for o próximo titular da Casa Branca, não haverá motivos para festa ou celebração.