A ditadura do mercado, o “salve-se quem puder”, a globalização corporativa propagada a partir de Londres e Washington desde meados dos anos 1980 do século XX, influenciaram profundamente as políticas da América Latina e do Caribe, destruindo os esforços de justiça social e demonizando o público, o estatal como suposta fonte de corrupção e ineficiência. A ideia era simples: era necessário privatizar tudo, reduzir e desfinanciar o Estado, deixando as grandes maiorias indefesas diante da ganância empresarial.
Por Javier Tolcachier, para o Barão de Itararé*
Neste contexto, os meios de comunicação de massa, concentrados principalmente em alguns poucos conglomerados, foram funcionais e extremamente eficazes para instalar esse senso comum, impedindo na prática que qualquer narrativa diferente pudesse florescer e gerar alternativas. Não é à toa que o lema publicitário da primeira-ministra da Inglaterra, ideologia difundida pelos meios de massa como verdade revelada, foi “Não há alternativa”.
No entanto, a reação dos povos foi poderosa. A primeira década do século XXI despertou com força sonhos que pareciam aniquilados por esse neoliberalismo imposto, mais uma vez, pelo impulso neocolonial do Norte Global.
Tempos antes, dos corações sobreviventes do terror patrocinado pelo mesmo poder econômico, também havia surgido uma resistência comunicacional, uma guerrilha de vozes silenciadas cuja única arma era a palavra, que foi crescendo acompanhando o clamor popular.
À barbárie do capital e à pretensa alienação de sua riqueza humana e econômica pelo então hegemônico, à tentativa final de anexação geopolítica da América Latina e do Caribe, os movimentos organizados responderam com um retumbante “Não à ALCA!” Um grito emancipador no qual as redes de comunicação popular tiveram muito a ver.
Corria o ano de 2005. A Revolução Bolivariana havia triunfado e se aproximavam importantes vitórias populares em vários países da região. Os novos governos instaurados, pela urgência das necessidades imediatas do povo de sair da miséria, de recuperar direitos como a atenção à saúde, educação, moradia e renda digna – para mencionar apenas alguns –, não conseguiram com a radicalidade necessária realizar a desconcentração do monopólio midiático vigente. E não foram poucos os subterfúgios utilizados pelos meios hegemônicos para impedi-los, o que demonstrou a importância de democratizar a comunicação como ferramenta de transformação inevitável.
Dessa forma, as fábricas de narrativas do capital continuaram minando a opinião pública, a credibilidade e a justiça das tentativas transformadoras.
O mesmo ocorreu com os projetos de colaboração e articulação que esses mesmos governos geraram para alcançar pelo menos um relacionamento conjunto soberano em um mundo assimétrico. Por outro lado, as práticas formais e burocráticas fizeram com que a integração regional se distanciasse cada vez mais do sentimento e das necessidades do povo, ao qual foi atribuída uma participação periférica, quando não inexistente.
Assim, esse impulso integrador e democratizador da soberania popular participativa foi se desvanecendo, ficando confinado a slogans ou, no máximo, a práticas minoritárias.
O tempo passou e surgiram no cenário político novas gerações, criadas entre sedutoras promessas de consumo e liberdade individual e historicamente cada vez mais distanciadas das experiências de seus predecessores, começaram a desconhecer a luta histórica por direitos, aderindo muitos deles à ilusão retrógrada e fictícia das direitas.
Essa transformação do mapa geracional combinou-se com rápidas mudanças tecnológicas, nas quais o capital, mais uma vez, levou a dianteira, mudando não apenas as modalidades produtivas e de consumo, mas também as relações e formas de comunicação.
A internet, uma ideia surgida no calor de projetos militares, mas também do intercâmbio de conhecimento universitário – aspectos de íntima ligação nas mentes belicosas do Norte –, coincidindo também com a expansão globalista, acabou se instalando em quase todas as atividades humanas como um elemento essencial. Essa tecnologia surpreendente, que conseguiu conectar grandes segmentos populacionais, prometeu inicialmente a possibilidade de expressão universal e irrestrita, mas terminou, algumas décadas depois, sucumbindo à mesma ditadura monopolista de seus antecessores analógicos.
A situação atual
Encontramo-nos diante de um panorama de fragmentação social, no qual o poder corporativo se aproveita da primazia do indivíduo sobre a noção de conjunto.
Na América Latina e no Caribe, no entanto, com uma importante população cujos traços culturais ainda conservam fortes elementos subjetivos coletivos, isso produz tensões que afloram abrindo fissuras nessa malha desintegradora do individualismo.
Desintegração que, desde a mesma base social até as esferas institucionais dos Estados e suas relações, conspira por sua vez contra projetos de integração e associação orgânica, permanente e crescente.
É ingênuo, então, pensar nessas circunstâncias na reapropriação da comunicação pelo povo e suas organizações? É crível e alcançável a utopia de uma crescente unidade latino-americana e caribenha a partir de sua base social? Mais ainda, são objetivos necessários, desejáveis e ainda vigentes ou apenas sonhos nostálgicos de uma geração envelhecida e um mundo que já não existe?
Comunicação e unidade popular regional como objetivos revolucionários
A essência do capitalismo como sistema coisificador e predador não se modificou, mas adaptou, como em outras ocasiões, seu modo de exploração. As maiorias continuam submetidas a condições de vida deploráveis, sendo controladas por minorias insensíveis que, através da manipulação comunicacional, pregam a competição e acentuam a desigualdade.
Não é possível transformar o sistema sem democratizar a comunicação e é mais que provável que não seja possível democratizá-la dentro do mesmo sistema. A revolução do modo de pensar e de viver é o aspecto chave. Mas como contribuir para forjar e alimentar a revolução da consciência sem a possibilidade concreta e efetiva de comunicá-la? Esse desafio continua plenamente vigente, ou talvez mais, considerando a desinformação e os elaborados sistemas digitais de controle social instalados em nossos próprios aparelhos. Dessa forma, a revolução social adquire hoje também nuances de rebelião tecnológica.
Quanto à unidade da América Latina e do Caribe a partir de sua mesma base social, é urgente a necessidade de fazer compreender a nossos movimentos e lideranças a projeção regional e talvez mundial de nossa ação, ainda que comece a se desenvolver em espaços limitados. O poder reside no efeito demonstração que se possa gerar, vinculado à possibilidade de que, mesmo sem o controle dos canais de comunicação, isso desperte uma onda em cadeia que o sistema não possa conter.
Assim sempre ocorreu com o Renascimento, as Revoluções Francesa, Russa e Chinesa e em nossa região com as Revoluções Cubana, Sandinista e Bolivariana, para citar apenas alguns exemplos. Nessa espécie de corrida de revezamento, hoje materizalizam interessantes avanços como o Humanismo Mexicano da Quarta Transformação e o projeto de Paz Total do governo colombiano, países que, mesmo assim, ainda lutam para romper com o domínio imposto a força pelo neoliberalismo.
Muitos lutadores se desanimam hoje ao observar o avanço de forças retrógradas e o apoio popular que momentaneamente recebem, mas também, como em outros momentos, o fascismo em sua fase crescente é apenas a resultante do fracasso capitalista em garantir melhores condições de vida para todos os seres humanos. É um indicador de fim e não de princípios venturosos, é o momento culminante da reação aos avanços anteriores, que mais adiante será substituída em seu enfraquecimento por novos ventos emancipadores.
É previsível que continuem as oscilações políticas no interior de cada país, mas algo está claro, o direito a comunicar e a unidade dos povos não só são objetivos revolucionários vigentes, mas também são o caminho e o indicador de uma nova etapa na vida em comum de nossos povos.
Com o foco nesses objetivos, nossa tarefa neste momento histórico é elucidar como realizá-los.
*Jornalista, investigador do Centro Mundial de Estudos Humanistas, comunicador na agência Pressenza e militante humanista, integrante do Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA)
Somos América é uma coluna periódica do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé dedicada à publicação de análises sobre comunicação, política e integração regional. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos que estão conectados à rede do Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.