27 de junho de 2025

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Empreendedor de si mesmo, sem saúde, sem descanso e sem futuro

Era uma vez um mundo onde a tecnologia prometia libertar a humanidade. Lembra? Falava-se em robôs fazendo todo o trabalho pesado, inteligência artificial resolvendo tarefas repetitivas, e a gente vivendo mais, melhor e com tempo de sobra pra viver. Bem-vindo à distopia: você agora é o robô.

Por Joanne Mota, para o Barão de Itararé

No lugar de jornadas mais leves, vieram os “algoritmos de produtividade”. No lugar de descanso, o alerta do app: “tem corrida na sua área!”. No lugar da aposentadoria, a ilusão de que o Pix do fim do dia garante o pão da semana. A tecnologia não nos libertou — ela nos colocou para correr. Literalmente.

Enquanto vendem que o trabalhador agora é um “empreendedor de si mesmo”, na prática, ele é um prestador de serviço 24/7 sem contrato, sem segurança, sem direitos. Uma empresa sem CNPJ, sem férias e sem plano de saúde. Mas com muita motivação, claro — basta assistir três vídeos no TikTok com música de fundo e frases do tipo “você é o seu único limite”.

E o modelo tradicional, com carteira assinada, jornada regrada e benefícios? Ah, esse está sendo desmontado aos poucos — com aplausos de parte da juventude. Afinal, quem quer viver preso a um trabalho 6×1, com chefe, horário fixo e desconto do INSS? Melhor ser “livre”, mesmo que essa liberdade custe caro à saúde mental e ao futuro.

Mas aqui está a chance de virada: a luta contra a jornada 6×1 não é só sobre a escala. É sobre tempo. É sobre dizer que a formalização precisa mudar para sobreviver. Que a reforma que precisamos não é a da flexibilização, mas a da humanização do trabalho.

E cá entre nós: se a tecnologia realmente fosse libertadora, ela estaria reduzindo a jornada de trabalho, não criando uma cultura na qual a produtividade é medida em entregas por minuto e likes. Se fosse para nos ajudar, não nos transformaria em peças da “gig economy”, quando você só vale enquanto estiver ativo, correndo, clicando, rendendo.

No fundo, o que temos é um capitalismo turbinado por Wi-Fi. Um modelo que usa a estética da autonomia para aprofundar a lógica da exploração. E o mais cruel: convence os explorados de que estão fazendo isso por escolha, quando na verdade é a única opção disponível.

A Parada LGBTQIA+ deste ano levantou uma bandeira incômoda e urgente: o direito à velhice. Envelhecer com dignidade, com aposentadoria, com acesso à saúde e respeito. Mas como isso é possível num mundo onde ninguém mais contribui? Onde a juventude foi ensinada a ver previdência como imposto, e não como proteção coletiva?

A pauta do fim da escala 6×1 pode ser o fio da meada. Um ponto de partida para reverter a lógica do “trabalhe enquanto eles dormem” e recuperar o que é básico: tempo para viver, direitos para envelhecer e trabalho que não adoeça. Isso porque numa sociedade que valoriza a flexibilidade e a autonomia, a rigidez do sistema formal aparece como um entrave.

É aí que a pauta da luta pelo fim da escala 6×1 se firma ainda mais como uma pauta estruturante para nosso tempo. Uma janela de oportunidade histórica. Um convite para repensar o Trabalho a partir da perspectiva da vida — no sentido ontológico do termo, como uma categoria fundamental para a constituição do ser humano, tanto individualmente quanto socialmente. Neste sentido, o fim da escala 6×1 pode catapultar a luta no sentido da recuperação do valor do emprego com direitos sem cair na armadilha da informalidade romantizada. É possível, sim, ter um contrato formal com dignidade, tempo livre, reconhecimento e saúde. Mas isso exige confronto com a lógica que transforma o trabalhador em engrenagem descartável.

Está na hora de encarar a verdade: a tecnologia não é neutra. Ela reflete o projeto de sociedade que a constrói. E, hoje, esse projeto está nos matando de cansaço enquanto lucra com cada minuto que passamos conectados, engajados, entregando — de graça ou quase isso.

Se o futuro é digital, a luta também precisa ser. Que a gente saia do Wi-Fi e vá para as ruas, para dizer que a revolução não é algoritmo. Mas sim de classe.

Coluna do Barão é um espaço dedicado à publicação de análises e reflexões sobre a comunicação e questões como a política, a economia, a cultura e sociedade brasileira em geral. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos, em sua ampla maioria, membros a Coordenação Executiva ou do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.