21 de novembro de 2024

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Coalizão Direitos na Rede alerta para os riscos na urgência em alterar a Lei de Segurança Nacional

Apesar de representar um verdadeiro “entulho autoritário” e chocar diretamente com disposições da Constituição brasileira, a substituição da Lei de Segurança Nacional (LSN)  por outra lei em um momento de instabilidade política e ameaças às instituições democráticas pode abrir espaço para mudanças drásticas e estruturais para a luta por direitos no Brasil.

De acordo com nota publicada pela Coalizão Direitos na Rede, que engloba diversas entidades da sociedade civil, o caráter de urgência e a falta de debate público sobre o que se pretende alterando a LSN aponta para “cenários presentes e futuros de ampliação da criminalização de movimentos sociais e da sociedade civil organizada”.

Leia a íntegra do texto, publicado originalmente aqui, a seguir:

A Internet e as propostas de Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito

A discussão sobre a revogação da Lei de Segurança Nacional (Lei 7170/83) e da possível aprovação de uma nova legislação de “defesa do Estado Democrático de Direito” é um tema estrutural para a luta por direitos e fortalecimento da democracia no Brasil, merecendo atenção especial e um debate público aprofundado. A Coalizão Direitos na Rede – que reúne 45 organizações da sociedade civil que atuam no campo dos direitos digitais – entende que este debate só trará avanços à medida que for realizado com a participação de todos os setores da sociedade brasileira, em especial os movimentos sociais e a sociedade civil, responsáveis pela construção diária do Estado Democrático de Direito no país.

A Lei de Segurança Nacional (LSN) representa um entulho autoritário, com conteúdo explicitamente incompatível com a Constituição Federal. No entanto, sua substituição por outra lei em um momento de instabilidade política e ameaças às instituições democráticas poderá abrir espaço para cenários presentes e futuros de ampliação da criminalização de movimentos sociais e da sociedade civil organizada. Como já defenderam recentemente diversas entidades, uma nova lei que proteja tais instituições deve ser estruturada a partir de bases diferentes da doutrina de segurança nacional. A proteção a direitos constitucionais deve ser regra, e o uso de criminalização deve ser limitado a casos extremos que afetem a dmocracia. Qualquer lei que tenha como objetivo a proteção do Estado Democrático de Direito deve conter diretrizes que fortaleçam e detalhem os princípios da Constituição que fundamentam a democracia e não pode ser construída somente a partir da lógica do direito penal. 

Em razão disso, a Coalizão Direitos na Rede defende que qualquer projeto de lei relativo ao tema seja objeto de  um debate amplo no Parlamento, que considere a voz de todos estes interlocutores e seja feito com um tempo adequado para avaliação de todas as alternativas e riscos.

A Internet e a esfera pública democrática

Sabemos que a Internet é hoje parte estruturante da nossa democracia. É nas redes sociais ou a partir de ferramentas tecnológicas que muitos direitos fundamentais são exercidos, como a liberdade de expressão, de associação e também os direitos políticos. Nossas eleições são profundamente digitais, seja do ponto de vista dos sistemas de apuração, seja da arena onde são discutidas as propostas e candidaturas.

Com isto em vista, a Coalizão Direitos na Rede tem acompanhado com enorme preocupação o uso recorrente da LSN para cercear direitos de livre expressão ou para perseguir politicamente cidadãs e cidadãos a partir de seu comportamento na Internet. Estes são exemplos recentes de como a legislação em vigor é antiquada e problemática, trazendo a tipificação de crimes facilmente apropriados por autoridades que buscam controlar críticas legítimas feitas a seu respeito. 

Este tipo de criminalização não deve ter lugar em uma legislação para proteger o Estado Democrático de Direito, que precisa reconhecer que críticas e vozes dissonantes fortalecem a natureza democrática de qualquer sociedade – e não enfraquecem sua “segurança”. Da mesma forma, questões tecnológicas não podem ser utilizadas como brecha para extrapolar o escopo da lei para casos banais, que atinjam condutas que não tenham gravidade suficiente para colocar em risco a estabilidade da nossa ordem constitucional.

Os maiores riscos para direitos digitais

Entendendo que o Congresso Nacional deve estruturar um processo amplo de escuta e participação da sociedade sobre uma possível nova lei de proteção ao Estado de Direito, a Coalizão Direitos na Rede desde já aponta graves riscos imediatos aos direitos digitais  no tratamento dado  à matéria em propostas ventiladas nos últimos dias.

O primeiro risco diz respeito à tipificação do chamado “crime de espionagem”, que seria o de comunicar ou divulgar a grupos ou governos estrangeiros documentos secretos. É necessário que esta proposta seja revista para considerar que pode ferir a atividade jornalística ou de fiscalização legitimamente exercida pela sociedade civil, que muitas vezes se apoia sobre o trabalho da imprensa internacional ou de denunciantes (whistleblowers), funcionários de dentro do Estado, por ele contratados ou a ele vinculados, justamente para defender direitos. Estas atividades podem revelar fatos de interesse público ou lesivos à democracia e suas garantias constitucionais, não cabendo, portanto, uma criminalização de conduta que não reflita esta finalidade. Não devem, assim, ser legalizados ou protegidos segredos que causem dano ao Estado de Direito, nem punida a divulgação democrática de informações de interesse público.

O segundo risco decorre da proposta de criminalização do que foi chamado de “comunicação enganosa em massa”. Retomando o debate recente feito no âmbito do projeto de lei das “fake news” (PL 2630/2020), já apontamos que este tipo de iniciativa pode abrir brechas para criminalização de expressões legítimas e do conjunto dos usuários da rede, por mais que carregue boas intenções. No caso do PL em discussão no momento, é claramente ofensiva à livre expressão qualquer tipificação de disparos ou disseminação de conteúdos pela Internet que não estejam diretamente relacionados a um dos possíveis novos crimes ao Estado Democrático de Direito previstos no próprio PL.  Nesse sentido, deve-se destacar que a Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e Notícias Falsas (“Fake News”), Desinformação e Propaganda [1] recomenda aos Estados, relativamente ao combate à desinformação, predominantemente ações positivas para promover a liberdade de expressão e um ambiente plural e diverso para as comunicações. A discussão de ações coordenadas, como disparos, deve partir do princípio de que crimes comuns (como contra a honra) ou limites da propaganda eleitoral (como os que proíbem a divulgação de fato “sabidamente inverídico”) não são por si só lesivos ao Estado de Direito. Mesmo que problemáticos, eles devem ser analisados em contexto e tratados em esferas proporcionais a seus danos. 

O terceiro risco se conecta com preocupações mais amplas sobre a liberdade de expressão. Neste sentido, a Coalizão Direitos na Rede repudia a tipificação de condutas que possam representar quaisquer críticas ou opiniões a respeito de autoridades. Aqui, a preocupação é sobre o texto enquadrar enquanto crimes contra o estado democrático de direito o legítimo exercício de liberdade de opinião e expressão, ainda que com duras críticas, e assim inibir e restringir seu exercício por parte de usuários da Internet, ativistas e jornalistas.

Esta preocupação deve permear a análise do projeto de lei em discussão, especialmente em conjunto com organizações e pesquisadores que debatem a questão da liberdade de expressão e de imprensa e seus limites, bem como os princípios e padrões internacionais sobre direitos humanos. Declaração conjunta dos relatores da ONU e da OEA sobre liberdade de expressão, por exemplo, expressa que qualquer restrição à tal direito deve respeitar um “teste tripartite”, isto é, deve i) estar prevista em lei, ii) buscar uma finalidade legítima reconhecida pelo direito internacional e iii) ser necessária e proporcional para alcançar a finalidade desejada [2].

Neste sentido, ressalta-se o proposto crime de “insurreição”, cuja pena é aumentada quando há, similarmente, a “propagação de fatos sabidamente inverídicos”, conceito extremamente aberto e que pode representar uma brecha para restrição da liberdade de expressão. Ainda, destaca-se a desproporcionalidade deste aumento de pena, tendo em vista que a “propagação de fatos sabidamente inverídicos” é colocada no mesmo patamar do uso de violência e ameaça mediante incitação.

Por fim, há ainda o risco de que novos tipos penais que tragam temas de tecnologia criem brechas para criminalizar atividades banais no campo da segurança da informação ou o ativismo digital de maneira geral. Desta maneira, entendemos que será necessário sempre qualificar tais tipos penais com a intenção de dano ou risco real ao Estado de Direito, e que tal criminalização seja compatível com a sanção proposta.

Ante as atuais limitações na participação e acompanhamento por parte da sociedade civil dos trabalhos do Congresso Nacional, é fundamental que todo e qualquer debate sobre projetos de lei que representem ameaças à liberdade de expressão, direito de manifestação ou reunião somente sejam realizados a partir da garantia de ampla participação dos grupos interessados e diretamente afetados por ela. 

 Assim, acreditamos que somente um debate aprofundado sobre o mérito das propostas é capaz de sanar riscos como os citados acima. Reiterando que este debate é estruturante para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito no país e de suas garantias, a Coalizão Direitos na Rede  segue alerta para apontar  possíveis ameaças aos direitos digitais nas propostas em discussão, bem como está à disposição para contribuir com alternativas para a expansão da proteção da nossa democracia.

Brasília, 16 de abril de 2021

[1] Disponível, em espanhol, em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=1056&lID=2

[2]  Cf. Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e Internet (2011). Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=849&lID=4