24 de novembro de 2024

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Eliara Santana: A digital da imprensa nos 1000 dias de Bolsonaro

Há mil dias o Brasil tem um ogro genocida na presidência. Há mil dias, esse ogro e sua equipe absolutamente incapaz trabalham com afinco para destruírem o projeto de Nação que vinha sendo construído pouco a pouco.

Em todas as áreas, não há o que comemorar nesses mil dias de (des)governo Jair Bolsonaro.

Na educação, na economia, na saúde, nas questões sociais, no meio ambiente… só o que vemos são resultados negativos e muito retrocesso.

Um retrocesso que é civilizatório; com Bolsonaro, o Brasil retorna a pautas nefastas, situações inaceitáveis, e emergem ações que aviltam a cidadania, a dignidade humana.

Por Eliara Santana*, no Viomundo

Vamos fazer um breve apanhado da nossa situação atual após os mil dias que abalaram a Nação:

Economia

Aumento enorme do desemprego – já são mais de 14 milhões de desempregados; inflação em dois dígitos e subindo, aumento enorme dos itens da cesta básica, além da gasolina e do gás de cozinha. Crise hídrica batendo à porta, com enorme risco de apagão. A economia não reage e não há qualquer proposta vinda de Paulo Guedes.

Educação

Um vai e vem de ministros, todos com perfil muito conservador e cada um pior que o outro, além da perseguição às universidades e o corte enorme de financiamento para pesquisa, transformou em calamidade o cenário da educação no Brasil.

Houve uma redução geral de recursos para a pasta – apenas como exemplo, em 2020, a Educação Básica teve o pior orçamento em uma década, com a redução de investimentos para construção de creches e a ampliação do tempo integral.

Saúde

Após quase dois anos, o Brasil está longe de controlar a pandemia. Já estamos com quase 600 mil mortos, e a vacinação segue ainda num ritmo lento, pois não há imunizantes em quantidade suficiente.

O governo federal, deliberadamente, não quis comprar vacinas e preferiu apostar suas fichas em cloroquina e outros medicamentos comprovadamente ineficazes.

Houve ainda o fim do programa Mais Médicos, com redução no número de médicos que atendiam os lugares mais inóspitos do pais, além de redução no número de agentes comunitários de saúde, queda no número de atendimentos nesse nível de atenção à saúde e redução na taxa de cobertura vacinal de rotina para crianças.

E mais uma coisa alarmante, entre tantas: aumento grande no número de mortes maternas, por complicações durante a gravidez, parto ou pós-parto.

Meio ambiente

Falta de ação para prevenir os grandes incêndios, ação de grileiros em terras indígenas, desmatamento sem controle na Amazônia, paralisação da política de reforma agrária e da demarcação de terras indígenas, garimpo ilegal. O governo tem praticado uma forte restrição orçamentária para um total desmonte da política ambiental.

Ação social

As ruas das cidades brasileiras estão se transformando em local de moradia para milhares de pessoas. Pobreza e aumento da desigualdade batem recorde. Nos mil dias de (des)governo Bolsonaro, mais de 2 milhões de pessoas foram jogadas na miséria.

Há um esvaziamento expressivo de programas de assistência social, como o Minha Casa, Minha Vida e o Bolsa Família (ambos rebatizados). Famílias estão voltando a usar lenha para cozinhar, pois não têm mais condições de comprar gás de cozinha. O desalento é geral.

Como chegamos até aqui?

Há inúmeros fatores que contribuíram fortemente para a eleição de Bolsonaro e esse estado de coisas deplorável que vivemos nesses mil dias. E muitos responsáveis, sem dúvida.

Portanto, eu quero lembrar de novo, mais uma vez, a responsabilidade da imprensa corporativa brasileira nesse processo.

Mesmo que agora parte dos grandes grupos de comunicação – Globo, Folha de S. Paulo, Estadão etc. – esteja se opondo a Bolsonaro, com reportagens mostrando desde a inflação sem controle à corrupção que envolve ele e a família, no passado recente, isso não se deu assim.

Houve um processo de silenciamento, de escamoteamento, de naturalização de coisas que não poderiam e não deveriam ser naturalizadas.

Parece-me curioso que os veículos tenham demorado tanto a perceber o potencial virulento de Jair Bolsonaro – um capitão reformado e afastado do Exército, com posicionamentos e declarações abertamente machistas, homofóbicas, misóginas e racistas. Com tais credenciais, ele seria mesmo alguém realmente capaz de governar o país?

Sempre me causou surpresa que os grandes veículos de comunicação do Brasil tenham tido essa percepção tão tardia, posto que a imprensa estrangeira – NYT, Guardian, The Economist, CNN, para citar alguns – se horrorizava há muito, antes mesmo da eleição de 2018, com as manifestações e os posicionamentos de Jair.

De fato, ao longo desses mil dias, vimos um movimento de ir e vir no relacionamento da mídia com Jair, tendo havido um rompimento um pouco mais expressivo a partir do acirramento da pandemia, especialmente no momento em que os meios estruturam o Consórcio de Imprensa para obter e divulgar dados sobre a pandemia e o governo se atira com voracidade a práticas negacionistas, o que impacta absurdamente o combate à Covid.

Agora que a CPI mostra os absurdos que foram cometidos e a condução quase criminosa do governo na pandemia, o acirramento dos meios com Jair é bastante mais intenso. De alguns meios, diga-se de passagem.

Portanto, creio que vale recapitular alguns aspectos nessa relação que, agora, é de conflito aberto, sobretudo considerando-se o Grupo Globo e a Folha de S. Paulo, mas que já foi de tolerância. Bastante tolerância.

Jair nunca foi o candidato dos sonhos da direita e centro-direita nas eleições de 2018. Havia outros candidatos, mas eles (tentativa após tentativa, com um apresentador global) não emplacaram. O ex-deputado se tornou, portanto, o candidato possível.

O antipetismo e o apoio inconteste à Lava Jato dominavam o espectro dos meios de comunicação.

Ou seja, desde o apoio ao golpe maquiado de impeachment contra  Dilma Rousseff até a prisão de Lula, as arbitrariedades e injustiças cometidas foram devidamente silenciadas pela imprensa.

Havia uma urgência em tirar o PT do páreo, o que possibilitou que se atenuassem as possíveis “divergências” em relação a Jair e seu deplorável currículo. E foi assim, então, que o capitão reformado (e afastado do Exército) se tornou o candidato possível.

Havia uma aposta, entre esses grupos de poder, de que seria fácil controlar Bolsonaro uma vez ele estando na presidência; afinal, “tudo menos o PT”, dizia-se por aí.

Recapitulando o cenário das eleições de 2018 e o comportamento da imprensa, fica uma questão muito inquietante: em nenhum momento da campanha eleitoral de 2018 a imprensa brasileira percebeu quem de fato era Jair Bolsonaro?

Essa questão envolve outros aspectos que precisam ser retomados para que sejamos capazes de tecer reflexões sobre 2022:

1) A imprensa ignorou ou minimizou as denúncias feitas pelo jornal Folha de S. Paulo do uso de WhatsApp pela campanha de Bolsonaro. Sem dúvida, uma investigação séria (como agora ocorre) poderia mudar o rumo das eleições.

2) O Jornal Nacional colocou em pauta um processo de humanização do candidato, silenciando sobre seu passado misógino, homofóbico e racista e dando espaço para a reprodução sem cortes de seus tuítes do hospital (após o episódio da facada).

3) Nunca houve grande interesse em investigar mais a fundo as ligações perigosas dele e dos filhos. Sempre houve indícios de muita coisa errada…

4) A imprensa sempre tratou as duas candidaturas – Haddad e Bolsonaro – como representantes de dois polos num mesmo campo democrático. Mas as diferenças entre as duas candidaturas sempre foram gritantes. Esse movimento ressurge e ressurgirá mais forte em 2022.

5) Nunca houve efetiva cobrança pelas propostas de Bolsonaro para o país ao longo da campanha.

6) A imprensa aceitou sem questionar as desculpas esfarrapadas para o não comparecimento de Jair aos debates.

7) A imprensa aceitou vender Bolsonaro, deputado há 30 anos sem aprovar um único projeto, como alguém de fora da política, alguém “novo”.

Nessa marca dos mil dias, refletir sobre esses aspectos e resgatar essa memória são essenciais para tentarmos entender como chegamos a um processo tão intenso de esgarçamento do país. Sobretudo, colocar essas questões nos ajuda a não deixar que tudo isso se repita.

*Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística pela PUC/MG.