Por Percival Maricato, no Jornal GGN
Cunha vem tentando intimidar jornalistas e se livrar de denúncias sobre corrupção, especialmente sobre episódios em que se envolveu desde o governo Collor, ajuizando dezenas de ações contra os mesmos, visando condenação penal ou civil (indenizações).
Em um dos casos, acusação contra Luis Nassif, o feitiço virou contra o feiticeiro. Cunha ajuizou queixa crime contra o jornalista visando sua condenação, por ter ele, em 2014, denunciado seu envolvimento em cinco episódios com significativas suspeitas de corrupção. E então revelou um a um os episódios e os fatos que o levavam a dizer que eram inverdades, ou em que havia deturpação.
A queixa crime foi ajuizada no Rio de Janeiro, onde o Ministério Público já se pronunciou contra a existência de crime. O juiz local, porém, preferiu enviá-la a São Paulo. Aqui chegando, o Ministério Público paulista também se pronunciou, contra a pretensão de Cunha. Finalmente, o magistrado para o qual a queixa foi distribuída, extinguiu o processo, após analisar uma a uma as acusações contra o deputado e concluir que os episódios aconteceram, que Cunha esteve envolvido. Livrou-se de possíveis condenações devido a vários motivos, um deles por prescrição.
Em um dos casos, assim se pronunciou o juiz:
“Da análise , vê-se que havia ao menos indícios de que tais fatos teriam ocorrido, do contrário, uma instituição como o Ministério Público, após provável exaustiva investigação, não teria entendido que haveria a necessidade de ajuizamento de ação de improbidade administrativa.”
Ao analisar a última acusação de difamação, concluiu o Magistrado:
“consistiria na afirmação, pelo querelado, de que haveria inúmeros inquéritos (mais de 20) em que o querelante constaria como investigado.Neste ponto, basta uma rápida pesquisa perante o sistema do Supremo Tribunal Federal para constatar que há sim inúmeros apontamentos em nome do querelante.Em se tratando de apontamentos criminais, consta a existência tanto de inquéritos policiais quanto de ações penais, em aproximadamente 15 oportunidades”.
Não é de agora que o deputado vem sendo suspeito e investigado. Talvez finalmente seja punido, por estarmos em outros tempos, onde quem devia acusar, engavetava processos. O problema é só fazer com que a Justiça seja igual para todos.
Percival Maricato
Abaixo segue a decisão completa:
SENTENÇA
EDUARDO COSENTINO DA CUNHA, deputado federal, qualificado nos autos, apresentou queixa-crime em face de LUIS NASSIF, brasileiro, jornalista, pela suposta prática, por cinco vezes, do delito previsto no artigo 139, c/c 141, II e III, na forma do artigo 70, todos do Código Penal.
Alega que o querelado o teria difamado, no dia 25 de agosto de 2014, por meio de publicação, em site da internet, de reportagem na qual imputaria ao querelante diversos fatos inverídicos que seriam ofensivos à sua reputação.
Segundo o querelante, seriam 5 as difamações contidas no referido artigo.
Inicialmente distribuído perante a Subseção Judiciária do Rio de Janeiro/RJ, o MPF oficiante perante aquela Subseção opinou pela rejeição da queixa (fls. 49/53). Decisão de fls. 64/65 declinando da competência da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, uma vez que o servidor que hospeda o blog em que publicado o artigo estaria localizado neste município de São Paulo SP.
Vistas dadas ao MPFSP (fls. 74), reiterando a rejeição da queixacrime.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
Da liberdade de imprensa e de expressão. Em razão da evolução histórica e dos recentes períodos conturbados da história brasileira, a preocupação com certos direitos fundamentais adquiriu maior relevo.
A liberdade de expressão, neste sentido, possui status de “sobredireito” ou direito preferencial, ou seja: embora inexista hierarquia entre direitos fundamentais, a sua relevância exige que eventual restrição seja exaustivamente pensada e sopesada.
Seu conteúdo é exatamente toda a opinião, comentário ou julgamento sobre qualquer assunto ou pessoa, devendo ser preservada sempre que não colida com outros direitos fundamentais.
No que diz respeito a personalidades públicas, a preocupação em proteger a liberdade de expressão e de imprensa se torna ainda mais relevante, havendo uma nítida prioridade desta em relação aos direitos da personalidade.
Isto não quer dizer que tal direito fundamental seja absoluto, o que iria contra a sua natureza principiológica e, portanto, passível de ponderação. Há diversos limites, sendo possível citar alguns: a proporcionalidade, a vedação ao anonimato, o direito de resposta, a violação à honra etc.
Especificamente quanto à honra, nosso Código Penal a tutela sob diferentes formas: a falsa imputação de um fato típico (crime de calúnia), de um fato ofensivo à reputação (difamação), ou que ofenda a dignidade ou decoro da vítima (injúria).No caso específico,
….o querelante alega que o querelado teria praticado 5 delitos de difamação, em artigo veiculado pela internet.
Desta forma, passo a analisar individualmente cada uma dessas imputações.
2. Análise de cada uma das imputações
2.1.
Primeira difamação
o querelante alega que a difamação consistiria na afirmação, pelo querelado, de que o primeiro, teria manipulado diversas licitações quando ocupou a presidência da Companhia Estadual de Habitação (“CEHAB”).É possível inferir que, de fato, houve o ajuizamento de ação de improbidade administrativa pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2006, em que eram discutidos possíveis favorecimentos realizados pelo querelante enquanto presidente da CEHAB.
Em decisão monocrática de 17.12.2014, nos autos do AREsp 560634, o STJ reconheceu a ocorrência da prescrição e rejeitou a ação civil pública inicialmente proposta pelo MPERJ.
Da análise destes fatos, vê-se que havia ao menos indícios de que tais fatos teriam ocorrido, do contrário, uma instituição como o Ministério Público, após provável exaustiva investigação, não teria entendido que haveria a necessidade de ajuizamento de ação de improbidade administrativa.
Igualmente, a decisão final proferida pelo STJ entendeu verificada a ocorrência da prescrição, não chegando a se manifestar sobre a existência ou não dos fatos ali narrados.
Assim, considerandose, como já ressaltado em tópico anterior, a relevância do direito fundamental ora em questão, bem como a existência de indícios de que os fatos poderiam ter ocorrido, não é possível imputar ao querelado a prática do delito de difamação.
2.2.
Segunda difamação
A difamação consistiria na afirmação, pelo querelado, de que haveria pessoas (deputado Francisco Silva e o traficante Abadia) com relações próximas ao advogado Carlos Kenigsberg (por sua vez, próximo do querelante),tendo os primeiros sido acusados de fraude para omitir imóveis do querelante.
Da análise do que foi narrado pelo querelante, é possível verificar que não lhe foi feita a imputação de qualquer conduta.
O querelado aponta que duas outras pessoas teriam sido acusadas de praticar fraude, o que não inclui o querelante. Por sua vez, essas pessoas seriam próximas de outra pessoa (o advogado Carlos Kenigsberg) que, por sua vez, seria próximo do querelante.
Vê se que é possível constatar que o querelado não imputou qualquer conduta ofensiva ao querelante, pois ainda que não tenha havido tais acusações de fraude, o próprio querelante deixa claro que isso não é contra si. Assim, é possível inferir que, também neste ponto, não há qualquer difamação em face do querelante.
2.3.
Terceira difamação
A difamação consistiria na afirmação, pelo querelado, de que aquele estaria envolvido em caso de sonegação fiscal da Refinaria de Manguinhos, em que não teria havido o correto recolhimento do ICMS.A esse respeito, o querelante junta aos autos (fls. 29/41) o pedido de arquivamento de inquérito, realizado pela PGR, em que tais condutas foram investigadas.
No pedido de arquivamento, a PGR, após longa análise das provas colhidas durante a investigação, constata a inexistência da prática de qualquer delito pelo querelante.
Contudo, o que lhe foi imputado na referida reportagem é que teria havido envolvimento em crimes de sonegação fiscal, o que, dos próprios elementos trazidos pelo querelante, constatasse que isso efetivamente ocorreu, tanto que gerou uma investigação perante o Ministério Público Federal.
Há diversas passagens que denotam a participação ativa do querelante nas investigações realizadas no âmbito da Refinaria de Manguinhos. Neste sentido, a própria PGR constata que o querelante realmente teria intercedido e participado dos fatos que lhes são imputados, sem contudo, caracterizarem –se fatos típicos.
Em resumo, não houve prática de qualquer fato típico pelo querelante, mas o mesmo se envolveu e esteve próximo de fatos que foram objeto de investigação criminal, o que descaracteriza qualquer difamação pelo querelado.2.4. Quarta difamação a difamação consistiria na afirmação, pelo querelado, de que o primeiro teria auxiliado determinado empresário na compra de combustível em Brasília, bem como oferecido o seu gabinete para uma determinada reunião.
Do excerto, extraise que, se verdadeiro o que foi narrado, não há, em uma perspectiva inicial, a imputação de qualquer fato ofensivo à reputação do querelante.
Desde que não se caracterizem delitos como de tráfico de influência, ou, por exemplo, atos de improbidade administrativa, é natural que haja reuniões e encontros entre políticos e a iniciativa privada, a fim de que possam ser adotadas condutas visando ao interesse público.
Ademais, em nenhum momento do artigo, há a menção de que o referido empresário (Ricardo Magro) estaria praticando atividade ilícita, e sendo auxiliado pelo querelante, o que foi dito apenas pelo patrono do querelante às fls. 06.
Ressalvese que, embora seja nítido o forte teor crítico que é feito no artigo jornalístico, caberia ao querelante duas possibilidades: apresentar as razões do referido encontro, se julgasse necessário, ou informado que ele não ocorreu conforme descrito.
Neste ponto, ainda que ela não tenha ocorrido conforme narrado, isto, por si só, não caracterizaria o delito de difamação, mas apenas uma informação incorreta, já que, a priori, não é desabonador a um deputado federal que tenha participado de uma reunião com um empresário (desde que, frise se novamente, não tenha havido finalidades escusas).
2.5. Quinta difamação. A última difamação consistiria na afirmação, pelo querelado, de que haveria inúmeros inquéritos (mais de 20) em que o querelante constaria como investigado.
Neste ponto, basta uma rápida pesquisa perante o sistema do Supremo Tribunal Federal para constatar que há sim inúmeros apontamentos em nome do querelante.
Em se tratando de apontamentos criminais, consta a existência tanto de inquéritos policiais quanto de ações penais, em aproximadamente 15 oportunidades.
Isto não é sinônimo, por si só, de que o querelante tenha praticado os delitos que lhes são imputados. No entanto, é lastro fático suficiente para demonstrar que não há falsidade quanto a este ponto da matéria jornalística.
É certo que o querelante é inocente e continuará assim, exceto se vier a ser condenado com trânsito em julgado, contudo, o artigo redigido pelo querelado apenas menciona a existência de inquéritos policiais, e não condenações.
Neste ponto, é bom ressaltar, uma vez mais, que a liberdade de expressão e de imprensa possui ainda maior relevância, sob pena de censura e de desvirtuamento do Estado Democrático de Direito.
Isto ganha ainda maior realce em se tratando de figura pública, como é o caso do querelante, que atualmente ocupa o importante cargo de presidente da Câmara dos Deputados, situação, aliás, que merece uma relativização da privacidade, justamente em razão do cargo desempenhado, cuja crítica é inerente à função.
Neste sentido: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS.
CRIME DE IMPRENSA. CRÍTICA E OFENSA. LIBERDADE DE IMPRENSA.
AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA (ART. 648, INCISO I DO CPP).
I Observações críticas, ainda que irritantes, nos limites da divulgação da situação fática, não configuram, de per si, crime de imprensa (art.27, inciso VIII da Lei de Imprensa).
II Não se pode alçar à condição de ilícito penal aquilo que somente é desejado pela especial susceptibilidade da pessoa atingida e nem se deve confundir ofensa à honra, que exige dolo e propósito de ofender, com crítica jornalística objetiva, limitada ao animus criticando ou ao animus narrandi, tudo isto, sob pena de cercearse a indispensável atividade da imprensa.III “.
A relação entre lei e liberdade é, obviamente, muito estreita, uma vez que a lei pode ou ser usada como instrumento de tirania, como ocorreu com frequência em muitas épocas e sociedades, ou ser empregada como um meio de pôr em vigor aquelas liberdades básicas que, numa sociedade democrática, são consideradas parte essencial de uma vida adequada.” (DENNIS LLOYD).
Writ concedido, trancandose a ação penal.(HC 16.982/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2001, DJ 29/10/2001, p. 229)É evidente que isto não confere o salvo-conduto a que sejam ditas falsidades em face de sua pessoa, contudo, é necessário que isto seja minuciosamente demonstrado.
Em outras palavras, a difamação ou injúria ocorreria desde que os fatos narrados estivessem totalmente dissociados da realidade, o que não ocorreu. Neste sentido, mutatis mutandis: STJ, REsp 1331098/GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T. j. 5.9.13. djE 24.10.13.
É fato que uma matéria jornalística deve prezar pela imparcialidade, narrando os fatos por completo, com informações precisas, inclusive ouvindo a versão daquele que será objeto da reportagem, o que, aparentemente, não foi feito.
Isto, por si só, pode implicar em infração ético jornalística, tornando o autor das denúncias questionável quanto às qualidades de suas notícias, mas não um criminoso.
DISPOSITIVO
Diante do exposto, nos termos dos argumentos do Ministério Público Federal, REJEITO A QUEIXA CRIME apresentada por EDUARDO COSENTINO DA CUNHA em face de LUIS NASSIF, com base no art. 395, III, do CPP.
Após o trânsito em julgado oficie se ao SINIC e IIRGD.
Cópia desta sentença servirá de ofício para as comunicações necessárias.
Comuniquem se.
Publique se,Registre se e Intimem se.
Disponibilização D. Eletrônico de sentença em 15/06/2015 ,pag 88/90.