Por Felipe Bianchi e Emilly Dulce (Brasil de Fato), para o Barão de Itararé
Fotos por Juliano Vieira
A comunicação comunitária foi pauta do curso A comunicação para enfrentar os retrocessos, nesta quarta-feira (28), em São Paulo. A importância e a necessidade de fortalecer as rádios e TVs comunitárias foram abordadas por José Eduardo Souza (Rádio Cantareira), Beto Almeida (TV Cidade Livre e membro do conselho diretor da TeleSur) e Paulo Miranda (ex-presidente da Associação Brasileira de Canais Comunitários – ABCCOM).
Fundamental para equilibrar um sistema de comunicação concentrado e hegemonizado por veículos comerciais, os meios comunitários têm um papel crucial na democratização da mídia: dar voz aos que são “invisíveis”. A avaliação é de José Eduardo Souza, que classifica como “mito” a ideia de que o povo não tem voz, não sabe ou não quer falar. “Nada disso é verdade. O que ocorreu, ao longo de mais de 500 anos, é que a voz do povo foi silenciada”, opina.
“A mídia comercial”, segundo ele, “trabalha incessantemente para silenciar e invisibilizar setores da sociedade: migrantes, imigrantes, negros, indígenas, pobres, comunidades do interior do país”. A “satanização” dos movimentos sociais e da política, além da banalização da pobreza, é pauta permanente desse monopólio midiático. “Nosso papel é reverter esse quadro e a rádio comunitária é um instrumento fundamental para essa tarefa”, salienta Souza.
Zé Eduardo: Rádios comunitárias são fundamentais para contrapor ao monopólio. Foto: Juliano Vieira
A mídia comunitária, afirma o radialista, é forma de resistência, forma de luta, que faz contraponto à visão única imposta pelos grandes meios privados. Mas fazer frente a eles é um desafio árduo: “Estamos fora do alcance padrão das rádios. É difícil achar a gente. Além disso, temos restrições quanto à publicidade, o que dificulta a nossa situação financeira”, pontua. “Você pode, no máximo, falar que o mercadinho do seu Zé apoia a comunitária. Quem vai investir nisso? Essa foi a forma maldosa que a Abert [Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, entidade patronal do setor] conseguiu impor na legislação para asfixiar o nosso campo”.
Apesar de considerá-las peças-chave no enfrentamento do Estado de exceção vigente no país, Souza lamenta que nem todas as rádios comunitárias tenham compromisso com uma agenda progressista. “Vale ressaltar que uma parte considerável das rádios comunitárias estão do outro lado. Não falam do golpe, das reformas que destróem direitos dos trabalhadores. Aqui na capital, contamos hoje, das 34 rádios que receberam outorga em 2006 e começaram a operar somente em 2010, contamos talvez cinco ou seis rádios com esse compromisso. O resto diz respeito à igrejas neopentecostais ou atores da direita”.
Conforme argumenta, um grande entrave para o fortalecimento do setor é a legislação vigente. Há uma enorme burocracia para se conseguir uma outorga – o direito a usufruir de um pedaço do espectro radioelétrico por onde transitam as ondas de radiodifusão, de propriedade do Estado – e para operar sob condições sustentáveis. Apesar disso, rádios comunitárias consolidadas como a Rádio Cantareira estão à disposição dos setores populares que se interessam em construir seus próprios veículos.
Os desafios das TVs comunitárias
As dificuldades de financiamento, divulgação e alcance também são enfrentadas pelas TVs comunitárias. Beto Almeida ressalta que a quantidade de adeptos dos canais comunitários deu um salto nos governos Lula e Dilma, “graças à distribuição de renda e valorização do salário mínimo”, mas enfatiza a falta de uma campanha por parte dos governos progressistas para uma maior divulgação dos canais comunitários.
O jornalista afirma que o tema ainda não é tão valorizado, inclusive dentro da própria esquerda. “Esse tabu não existiu, por exemplo, na Venezuela, onde os governos bolivarianos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro não só garantiram verbas para as TVs comunitárias como também fizeram todo um esforço de formação integrativa-cultural para a comunicação popular no geral”, ressalta.
Segundo Almeida, a batalha por canais comunitários e democráticos enfrenta dificuldades desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o ex-presidente confinou as TVs comunitárias a um aspecto pago e proibiu a publicidade comercial, dificultando a arrecadação e existência desses canais.
Para o jornalista, a legislação que regulamenta as TVs comunitárias já avançou, especialmente com a lei 12.485/2011, que permite a criação de um canal comunitário nacional e de TVs locais nas prefeituras espalhadas pelo Brasil, com dois Canais da Cidadania por município. Além disso, as emissoras comunitárias também podem admitir a veiculação remunerada de propaganda e publicidade comercial, limitada a três minutos por hora de programação. “Mas isso não foi ao mesmo tempo acompanhado da evolução consciente dos sindicatos e forças progressistas para a utilização dos canais comunitários”, pondera Almeida.
Paulo Miranda, fundador da TV Cidade Livre, destaca também que o preço dos equipamentos para a viabilização de uma TV comunitária é ainda mais alto do que os utilizados na rádio e, por isso, fala da importância do apoio dos setores da esquerda brasileira. “Nós temos muitas lutas para travar e com muito pouco apoio”, destacando a importância dos setores unirem-se para uma democratização maior da comunicação brasileira.
Paulo Miranda durante o Curso Nacional do Barão de Itararé. Foto: Juliano Vieira
Beto Almeida defende uma “reeducação da comunicação” para escapar do controle de conteúdo externo. “Nós não temos uma crise de talentos, mas de exibição. As TVs comunitárias, ainda que com recursos modestos, servem para uma experiência viva disso”.
Diferente das TVs comerciais, que muitas vezes dão preferência por veicular conteúdos externos, Almeida defende uma valorização da produção nacional por meio dos canais comunitários. “É preciso democratizar o audiovisual brasileiro em união com os povos latino-americanos no âmbito cultural, econômico e social”.
Em 20 anos de existência, a TV Cidade Livre adota uma linha editorial popular, atualmente com conteúdo 24 horas por dia. Além da programação própria e veiculação de oficinas sobre comunicação televisiva com alunos da rede pública de ensino de Brasília, o canal comunitário também transmite o sinal da TeleSur e da TVT (TV dos Trabalhadores).
Paulo Miranda salienta que a emissora aberta é da comunidade e, portanto, ela deve se apropriar disso. “Em Brasília, a TV comunitária é de acesso público, não só para quem tem a produção”.
Ele defende uma “municipalização” da comunicação. “Em termos de legislação, nós avançamos muito, temos uma das melhores legislações do mundo, mas isso precisa ser colocado em prática e esse compromisso deve partir do setor sindical de exigir dos prefeitos uma TV comunitária nas cidades”.
Beto Almeida chama a atenção, no entanto, sobre a criação de um canal livre nacional, que segundo ele, pode desestimular as TVs comunitárias locais. Segundo o jornalista, a tarefa agora é “dinamizar” o que já há de comunicação comunitária no Brasil, tendo em vista as 104 TVs comunitárias existentes.
Paulo Miranda também lembra de uma resolução da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que obriga as operadoras de TV a cabo a veicular o sinal de canais comunitários, mas pondera que ainda existe uma série de embargos dos setores comerciais que dificultam essa implementação. Segundo o jornalista, a medida pode ser um risco se as telecomunicações financeiras começarem a decidir sobre a produção popular. Além disso, a lei 12.485/2011 vai além do sistema a cabo e facilita a inserção das TVs comunitárias em um modelo digital.
Beto Almeida é representante brasileiro na TeleSur. Foto: Juliano Vieira
Beto Almeida reforça as dificuldades: “Sempre estamos enfrentando o obstáculo no sentido de montar um fundo público de apoio à comunicação comunitária”. Paulo Miranda completa: “É uma luta muito cruel que a gente vem desenvolvendo e travando”.
Apesar das dificuldades financeiras e limitações de equipe e infraestrutura, Almeida destaca que a comunicação comunitária tem a capacidade de gerar uma identidade própria. Em contraponto ao mercado financeiro de comunicação, o jornalista defende o papel da mídia contra-hegemônica na resistência ao golpe de 2016. “O golpe foi totalmente midiático. A comunicação tem sido a alma da resistência contra isso e consolida a comunidade com um grau de consciência”.
Sobre a Venezuela, Almeida cita os 19 anos de luta pela revolução bolivariana sob fogo cerrado das potências imperialistas e enfatiza: “Aqui, em contrapartida, nós nem resistimos ao golpe [arquitetado pelas direitas]”. Por isso, os jornalistas defendem uma política de aliança dos setores de esquerda com iniciativas dos governos para desenvolver, valorizar e aumentar a audiência das redes de comunicação comunitárias, previstas e gratuitas por lei.