21 de novembro de 2024

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Tempestade perfeita na economia é agravada pela alta dos juros

Elevação da taxa Selic, que já bateu em 7,75% e pode subir mais na próxima reunião do Copom dos dias 7 e 8, vem sendo tratada pela mídia corporativa como solução natural para conter a disparada da inflação. No entanto, adverte o economista Antonio Corrêa de Lacerda, a medida é o pior a se fazer neste momento, tendo em vista que o aumento do custo de vida se dá pela oferta e não pela demanda, já que a economia nacional encontra-se “destruída”.

Por Rita Casaro*

Convivendo com alto desemprego, que atinge cerca de 13% da população, e forte aumento do custo de vida, com a inflação acumulada nos últimos 12 meses já tendo ultrapassado os 10%, os brasileiros experimentam uma combinação perversa que caracteriza “quase uma tempestade perfeita”. Quem afirma é Antonio Corrêa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e professor-doutor do Programa de Pós-graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Na sua avaliação, para piorar a situação, é totalmente equivocada a medida que vem sendo tomada para fazer frente ao problema, ou seja, a elevação pelo Banco Central da taxa básica de juros, que chegou a 7,75% em 27 de outubro último. Ele destaca um elemento fundamental que vem sendo desprezado pelas análises que reverberam na mídia corporativa em defesa das decisões sobre o tema do Comitê de Política Monetária (Copom): “Em geral, elevam-se juros para desaquecer a demanda, mas no Brasil você tem uma economia destruída. Subir taxa de juros neste momento é a pior coisa que se pode fazer”, afirma. A decisão, portanto, beneficia apenas o rentismo do mercado financeiro. “Obviamente isso não é uma medida neutra, todos os detentores de crédito e ativos são favorecidos”, explicita.

Colaborador do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), que cita como exemplo positvo de participação da sociedade civil no debate nacional, Lacerda também ressalta a importância de que todos sejam ouvidos para que o poder de influência não fique restrito aos bancos. “O mercado não é só Faria Lima, somos todos nós, que trabalhamos, produzimos, é a sociedade, são as suas entidades representativas, e temos que ser ouvidos.” 

Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Lacerda também critica o teto de gastos públicos imposto pela Emenda Constitucional 95, que impede o Estado de agir para efetivamente retomar o desenvolvimento e cumprir os compromissos de atendimento essencial à população. Autor, entre outras obras, do livro “O mito da austeridade”, ele aponta na regra fiscal o elementar vício de origem que compara o dispêndio público ao orçamento doméstico. 

Para o professor, se o objetivo for alterar o quadro dramático, será necessário lançar mão de políticas emergenciais que assegurem a sobrevivência dos 30 milhões hoje fora do mercado de trabalho, entre desocupados, desalentados e subocupados. Ainda, é imperativo que haja mudanças estruturais que permitam melhorar indicadores, como a produção industrial e os investimentos. Confira a seguir e assista em vídeo:

Qual o quadro atual da economia nacional, marcado, para a população, por falta de emprego e preços altos?

Nós vivemos uma combinação perversa que poderíamos chamar de quase uma tempestade perfeita. A economia brasileira antes da pandemia já não vinha bem, ao contrário de algumas análises. No final de 2019, a propaganda oficial era que finalmente iríamos viver a retomada da economia. Mas eu e vários economistas já alertávamos que não era bem assim. A opção ultraliberal do Governo Bolsonaro e da equipe econômica do Paulo Guedes não trazia essa perspectiva, não havia vetores para o crescimento da economia. Em 2017, 2018 e 2019, o crescimento brasileiro foi muito baixo, pouco acima de 1%. A pandemia afetou praticamente o mundo todo, mas particularmente no Brasil foi uma tragédia de erros. Péssima gestão, negacionismo, uso de recursos públicos para falsas soluções, como a cloroquina, alternância no Ministério da Saúde, que deveria coordenar tudo isso, problemas de relacionamento entre os poderes, a briga do Executivo nacional com estados e municipais. Enfim, foi uma tragédia que tem nos custado mais de 600 mil vítimas fatais, sem contar a subnotificação de óbitos. E tudo isso se reflete na economia. Nem de longe pensar no equívoco de privilegiar a economia [em detrimento da saúde], o que é um erro; é preciso combater a pandemia para preservar a economia, e não o contrário. O bem mais valoroso, até economicamente, é a vida. Mas o resultado disso tudo foi uma recessão muito forte em 2020, quebra de empresas, desemprego, precarização, muitas famílias falidas, aumento da população de rua, da vulnerabilidade social e da insegurança alimentar. Em 2021, a economia melhora, mas isso é um efeito estatístico. Como teve uma paralisação muito forte, à medida que as atividades vão retomando, estatisticamente, mostra um crescimento, [o que os dados apontam] toda vez que se produz mais relativamente ao período anterior. Por isso nós, economistas da minha linha teórica, usamos mais o conceito do desenvolvimento, que é qualitativo. Desenvolvimento é como isso interfere na vida das pessoas. Uma visão equivocada usual é “estamos em recuperação”. Recuperação de quem, cara pálida? Porque o desemprego atinge hoje oficialmente 14 milhões de pessoas, que são os desocupados. Mas temos mais 5 milhões desalentadas, as que desistiram de procurar porque não veem perspectivas de obter um emprego. E 10 milhões de subocupados. Nesse conceito amplo, tem 30 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, quase um terço da PEA (População Economicamente Ativa). Para completar o quadro, temos uma aceleração inflacionária enorme, que tem afetado alimento, combustível, gás de cozinha, energia, tudo o que pesa muito na cesta de consumo. E quanto menor a renda, maior o peso desses itens que são muito necessários. Uma situação muito ruim e que tem levado a uma dificuldade enorme para a maioria da população brasileira.

Com sair dessa tempestade perfeita? E por que subir os juros não é solução para a inflação?

No caso da inflação brasileira, é preciso entendê-la. Em geral, elevam-se juros para desaquecer a demanda. Mas no Brasil, pela conjunção de fatores a que me referi, você tem uma economia destruída. Eu me referi ao PIB (Produto Interno Bruto), mas há também dois indicadores bem conhecidos da área de engenharia. Um é a produção industrial brasileira, que já vinha de uma estagnação de pelo menos dez anos em 2019, se agravou na pandemia e neste ano não está se recuperando, pelo contrário, continua caindo. A indústria é o motor da economia pelo seu papel de valor agregado, é motivadora de várias outras atividades. O segundo elemento muito importante são os investimentos, que é a chamada formação bruta de capital, ou seja, infraestrutura, construção civil, máquinas e equipamentos. Caiu absurdamente, está em elevação, mas com a ressalva de que a base é muito baixa. Se tomar como base 2014, estamos 30 pontos abaixo do investimento daquele momento. A reversão desse processo passa pela adoção de um conjunto de políticas públicas que são necessárias emergencialmente, e outras de forma mais estrutural. A economia só não caiu mais em 2020 em função do auxílio emergencial, para o qual o governo havia proposto R$ 200,00 e o Congresso elevou para R$ 600,00. Quando falo de 30 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, isso é um problema social gravíssimo, mas também um problema econômico. São 30 milhões de consumidores fora do mercado. Então, essa é uma primeira questão: garantir o provimento de recursos para saúde, educação e auxílio social aos que necessitam para preservação da vida e ativação da economia. Subir taxa de juros neste momento é a pior coisa que se pode fazer.

Se é um erro tão evidente, por que se adota essa medida?

Quando você eleva a taxa de juros, obviamente isso não é uma medida neutra, todos os detentores de crédito e ativos são favorecidos. Quando o Banco Central eleva os juros, o mercado financeiro está sendo beneficiado. No Brasil, tem uma série de profecias autorrealizáveis, porque a força da formação de opinião dos bancos, das financeiras e dos analistas ligados a essas entidades influencia o Banco Central e suas decisões. Então, temos o pior dos mundos, porque há a tempestade perfeita econômica, no sentido perverso, com a medida corretiva absolutamente equivocada. O setor produtivo brasileiro, exceto o agronegócio, que é amplamente beneficiado por uma série de fatores, inclusive pela subida dos preços internacionais das commodities (minério de ferro, grãos, petróleo, cobre etc.), é ultra-acanhado e não tem tido voz. Estamos aqui falando não só de política econômica, mas também de economia política. Quem são os atores que influenciam as decisões? Para fazer o quê? Até o propalado ajuste fiscal depende da retomada, porque o Estado não cria recursos, apropria-se deles através da cobrança de impostos. É preciso inverter as prioridades na política econômica, mas não tenho a menor expectativa que isso ocorra na atual gestão. Dois mil e vinte e dois é um ano de eleições gerais, e esse tema precisa ser debatido, um projeto de Nação. Não vamos mais cometer o erro de eleger alguém que não apresente o seu projeto econômico ou o terceirize a um posto de combustível ou a algo que o valha. Temos essa oportunidade, mas não basta só votar, é preciso discutir as alternativas e fazer com que aquela que for mais favorável à sociedade brasileira, e não só a um setor, prevaleça.

Como o teto de gastos, instituído pela Emenda Constitucional 95, representa um entrave às medidas necessárias à recuperação da economia?

O teto de gastos tem um vício de origem terrível, que é comparar equivocadamente o gasto público com o orçamento doméstico. Nós, mortais, famílias, empresas, pessoas, temos óbvias limitações de gastos, mas não é o caso do Estado, por vários motivos. Primeiro, pode emitir moeda; segundo, tem um poder fantástico de endividamento. Todos os Estados nacionais são deficitários e endividados, não por serem perdulários, mas porque têm compromissos – em geral numa democracia, definidos numa Constituição, como no nosso caso – e têm função de, numa crise, exercer o papel contracíclico. Na crise, o Estado precisa ampliar gastos, é uma matriz keynesiana de 100 anos, não é nenhuma novidade. Quando você amarra a expansão do gasto por 20 anos, está tirando o poder do Estado como elemento propulsor do combate à crise e do fomento ao desenvolvimento. Outro aspecto: ao colocar na cesta todos os tipos de gastos, o item que está sendo sacrificado não são as emendas parlamentares ou os gastos corporativos, mas sim o investimento em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento, políticas sociais. Veja o que aconteceu recentemente com ciência e tecnologia, um corte de 90% do orçamento, um absurdo. E o mercado financeiro também aplaude, porque não faz parte do teto o pagamento de juros do governo sobre a dívida pública. A chamada austeridade impressiona, vai ao encontro do senso comum, mas temos que sair disso. Veja o que está ocorrendo nos Estados Unidos, onde [o presidente Joe] Biden apresentou um programa trilionário de investimento com coordenação do Estado para induzir crescimento. Não estamos falando de nenhum governo esquerdista, mas de um governo democrático [para o qual], a exemplo do ocorre na Alemanha, no Japão, na Coreia do Sul, está muito claro o papel do Estado em conjunto com a iniciativa privada. O mercado não é só Faria Lima, somos todos nós, que trabalhamos, produzimos; é a sociedade e suas entidades representativas. Temos que nos fazer ouvir porque temos o que dizer. O “Cresce Brasil” é uma iniciativa de muitos anos dos engenheiros com o qual tenho a satisfação de colaborar porque vai ao encontro do que estamos falando: a sociedade se mobilizando, aproveitando as especialidades de cada um para apresentar um projeto de desenvolvimento ao Pais.

E o pacote Biden também leva em conta a questão ambiental e o combate às mudanças climáticas.

Assim como não há uma contraposição entre saúde e economia, Estado e iniciativa privada, muito menos há entre desenvolvimento, meio ambiente e questão social. Todas essas questões estão no bojo do conceito de desenvolvimento sustentável que é tão caro para todos nós. Nesse sentido, o Brasil tem muito a oferecer, somos um dos maiores mercados do mundo, temos área agricultável, energia renovável em grande escala, uma boa capacidade hídrica, talvez a maior do mundo e, apesar da desindustrialização, o maior parque industrial da América Latina. Não é a destruição do meio ambiente, com apoio ou omissão dos poderes, o que está ocorrendo hoje, que vai nos levar ao caminho do desenvolvimento. Mudar essa rota vai depender de todos nós, brasileiros. As opções são técnicas, os engenheiros, os economistas, os advogados podem contribuir, mas há as opções políticas, temos que fazer a escolha adequada e exigir dos postulantes ao Executivo e ao Legislativo que apresentem os seus projetos.

*Publicado originalmente no SEESP