23 de novembro de 2024

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Entre silenciamentos, mudanças e hipocrisia em geral — a mídia em 2021

A retrospectiva de 2021 do ponto de vista da cobertura midiática – principalmente da cobertura do JN – é desafiadora e instigante.

Observando o dia a dia da construção da notícia, é possível identificar os movimentos, e eles foram muito interessantes.

A estrutura neoliberal da mídia corporativa brasileira, dos conglomerados que definem o grande volume de notícias e entretenimento que circula pelo país, se revela nas pautas dominantes, que são bastante avançadas em termos de questões identitárias e dos assuntos relativos à ciência e ao conhecimento e extremamente retrógradas no que se refere aos temas de economia e política. E por isso importa ver e entender os movimentos, as nuances e as mudanças.

Por Eliara Santana*, no Viomundo

Separei por alguns pontos temáticos que considero principais nessa retrospectiva. Vamos a eles:

Pandemia e governo

Já no começo do ano, com o deboche do governo Bolsonaro em relação à vacina, o tom da cobertura jornalística subiu bastante.

O que se via era a ligação do pesadelo do avanço da Covid no Brasil à falta de ação do governo federal.

A ideia de colapso da saúde e de incompetência do governo estava dada, notícia após notícia, edição após edição. Havia ainda aquele tom de incredulidade e talvez de “esperança” de que o Brasil, enfim, não mergulhasse no caos.

Aos poucos, isso foi dando lugar à constatação de que o governo eleito em 2018 era um desastre e não faria frente à pandemia.

Nesse cenário, houve um grande espaço para as ações pró-vacina do governador de São Paulo, João Doria. Mas nenhum espaço para o protagonismo do Consórcio Nordeste, que criou um grupo de enfrentamento à crise da pandemia que foi coordenado por Miguel Nicolelis.

O seletismo da mídia corporativa prevaleceu, e o protagonismo do Nordeste não apareceu.

O colapso da saúde foi construído como bastante ligado à figura do presidente da República, ou seja, não se estabelecia uma responsabilização do governo como um todo. Na edição do JN de 6 de março, por exemplo, Jair recebeu o selo de culpado pela tragédia da Covid no Brasil – foram mais de 30 minutos na edição do jornal com cenas emocionantes e atores de primeira linha para mostrar que, se o Brasil ainda não tinha vacina suficiente e estávamos afundando no abismo da pandemia, existia um culpado, e ele se chamava Jair.

Com a instalação da CPI da pandemia, em abril, o espetáculo midiático tratou de dimensionar o tamanho da tragédia brasileira e do descaso do governo Bolsonaro, implicado em denúncias de corrupção envolvendo tratativas com a vacina e a falta de assistência aos brasileiros.

Foi uma cobertura bonita de se ver – e claro, uma cobertura que, com roteiros interessantes de denúncias, pautava também o depoimentos na CPI.

Em junho, na semana em que o Brasil rompeu a marca dos 500 mil mortos, houve um reposicionamento interessante da mídia. As manifestações anteriores, de 29 de maio, foram solenemente ignoradas. Mas, a partir de 19 de junho, com as novas manifestações, isso se altera, e a mídia passa a cobrir com quase entusiasmo as mobilizações dos brasileiros contra Bolsonaro.

Reflexo, com certeza, da constatação de que o país havia mergulhado nas trevas, o que significava que até a agenda neoliberal passava a correr grande risco com um governo genocida e negacionista.

Bolsonaro: a gente não sabia que era assim

A partir do segundo semestre, a toada que cresceu e permaneceu entre articulistas de um modo geral foi a de que ninguém esperava que Bolsonaro fosse um presidente tão ruim. Com tudo desmoronando, os brasileiros comendo pé de galinha, a recessão técnica, o PIB caindo, a crise sanitária, enfim, o caos generalizado, a melhor saída para gregos e estrelas midiáticas foi dizer que “a gente não sabia” ou “a gente não podia imaginar”.

Em muitos artigos e até reportagens, jornalistas e personagens do mundo político confessavam – sem pudor e com uma ingenuidade de dar inveja a criancinhas na creche – a surpresa com a insanidade do presidente Jair.

Como se ele nunca tivesse se mostrado inconseqüente, incompetente, machista, misógino, desrespeitoso, agressor do meio ambiente, negacionista, antivacina…

Moro: queda, ascensão, queda

 
Em março, com voto marcante do ministro Gilmar Mendes, o ex-juiz Sergio Moro foi considerado suspeito para julgar as ações relativas ao ex-presidente Lula na Lava Jato. Naquele momento, o JN e a mídia de modo geral promoveram um certo afastamento em relação à figura do ex-juiz e ex-ministro de Bolsonaro e em relação à Lava Jato.
 

Aparentemente, Moro caía em desgraça e todo o protagonismo na Operação Lava Jato precisava ser esquecido – posto que implicava seriamente a própria cobertura midiática e a parceria vergonhosa que se estabeleceu para jogar no chão o Estado de direito. O marreco, digo, ex-ministro, estava já morando em Washington, portanto, era fácil fingir que ele nunca existiu.

Mas, em novembro deste ano, o ex-juiz e ex-ministro de Jair Bolsonaro (que deixou o governo em abril de 2020) chegou finalmente à disputa eleitoral às claras.

Com a volta ao Brasil e a filiação ao Podemos, Moro passou a ser candidato. E a mídia, claro, viu naquele movimento a tão sonhada chance de uma terceira via.

A partir de 10 de novembro, Sergio Moro passou a ocupar um espaço mais que privilegiado no cenário midiático brasileiro. Reportagens em jornais impressos, entrevistas, opinião de Moro, avaliação do ex-juiz, menções de colunistas ao brilhantismo e à força de Moro no combate à corrupção… tudo isso era mostrado e reiterado, e até em assuntos aleatórios algum colunista dava um jeito de associar a figura do ex-juiz de Curitiba.

No entanto, quando o universo resolve conspirar, parece que nem os conglomerados de mídia fazem frente.

Enfim, nada disso adiantou muito. Em meados de dezembro, com a divulgação das pesquisas Ipec e Datafolha de intenção de voto, ficou mais que evidente que o marreco de Maringá, digo, Sergio Moro, não iria emplacar pelas vias normais do processo eleitoral.

As pesquisas foram, de fato, uma ducha de água muito fria e mostraram o que a mídia não queria ver: Moro, que tirou Lula da disputa em 2018, beneficiando Jair Bolsonaro, não emplacou.

Agora, ao apagar das luzes de 2021, ouvimos falar do “amadorismo” de Moro, que em longa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (que segue ainda firme na tentativa de normalizar o ex-juiz) reconheceu, afinal, que a Lava Jato perseguia mesmo o PT rsrs. Sincericídio…

Lula: silenciamento e bandeira branca

Após quase sete anos de silenciamento e ausência da mídia, aparecendo apenas com os canos carcomidos num fundo vermelho, o presidente Lula recobrou a voz na mídia.

Na edição de 10 de março, quando o Brasil voltava a bater novos recordes no número de mortos pela Covid, a edição do JN deu amplo espaço ao discurso do ex-presidente Lula, que recobrava seus direitos políticos finalmente – e após quase sete anos, o ex-presidente voltaou a ter um espaço positivo de fala, com bons destaques, na edição do Jornal Nacional.

Após muitos anos de silenciamento e de recortes sempre muito negativos, o discurso de Lula e sua potência foram colocados em horário nobre para todo o Brasil. Foram quase 12 minutos de fala direta para Lula, sem canos carcomidos e fundo vermelho. Nunca antes…

Mas após esse primeiro momento de retomada no começo do ano, com Lula em liberdade e em ascensão – as pesquisas começavam a ser feitas e mostravam a potência do filho de dona Lindu –, o que se viu foi a velha prática do silenciamento de volta, culminando com a cobertura pífia, pra não dizer ridícula, da viagem do ex-presidente pela Europa, quase com honras e agenda de chefe de Estado, em novembro.

Somente depois de de alguns dias e de encontros importantes com líderes de relevância no mundo e de Lula ser aplaudido de pé em duas instituições muito expressivas da Europa e do mundo (o Parlamento Europeu, na Bélgica, e o Instituto de Estudos Políticos, o Sciences PO, de Paris) é que o assunto mereceu alguma atenção da mídia e enfim apareceu no JN.

A agenda de Lula na Europa incluiu encontros com o presidente da França, Emmanuel Macron, o futuro chanceler alemão Olaf Scholz, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, o ex-premiê da Espanha José Luís Zapatero, o prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, o ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, o ex-presidente francês, François Hollande. Além da participação nos eventos e instituições citados.

Ou seja,foi uma agenda de chefe de Estado e deveria, portanto, interessar como pauta para os principais jornais e telejornais do Brasil. Especialmente num momento em que o país está com uma imagem péssima no exterior graças a Jair, o incomível.

Mas, apesar de tudo isso, no JN, somente o encontro com Macron teve alguma menção, e num tempo bastante pífio. A edição dedicou 36 segundos ao evento, com referência também ao prêmio recebido por Lula.

E então, após as pesquisas eleitorais mais recentes –Ipec e Datafolha – mostrarem que Lula pode ganhar no primeiro turno e a consolidação do caos geral no Brasil, o ex-presidente volta à cena midiática. Especialmente quando coloca em pauta uma possível aliança com o agora ex-tucano Geraldo Alckimin, que pode ser seu vice na chapa.

Em dezembro, o encontro entre Lula e Alckmin foi destaque de capa dos principais jornais e telejornais do país.

Após sair da prisão, ter provado sua inocência, ter quase 50% das intenções de voto, ter feito um giro pela Europa digno de chefe de Estado, Lula apareceu então, finalmente, nas capas dos jornalões brasileiros, nos telejornais, estando ao lado do ex-tucano Geraldo.

O que apenas confirma e reitera o modus operandi da imprensa corporativa brasileira e seu apreço pelos tucanos. Mas mostra também a capacidade muito impressionante de Luiz Inácio impor a agenda e se colocar na capa, em cena.

O jogo está sendo jogado, muitas emoções nos aguardam. Mas me parece que a imprensa está baixando as armas por ora e se realinhando em relação a Lula.

Economia sem crise

Na mídia, a ideia de crise econômica não apareceu. Vimos, em várias reportagens, a inflação sem controle e subindo, a alta abusiva de preços, o desemprego que não recuava, a queda significativa da renda do trabalhador, a cesta básica ficando inalcançável, os aumentos surreais do óleo, da gasolina, do gás de cozinha.

Tudo isso apareceu, é verdade. E apareceu bastante. Mas esses contextos, esses dados, esses cenários apareceram de modo pulverizado, em separado – assunto por assunto.

Ou seja, sem qualquer ligação entre eles, sem consolidarem uma perspectiva de CRISE ECONÔMICA, eram assuntos pulverizados, tratados de modo separado, sem comporem um todo preocupante.

Em 2021, quando temos o quadro grave de uma de recessão técnica, o PIB em queda, desemprego muito alto, a mídia não consolidou a percepção de crise econômica, como fez a partir de 2014/2015, no governo Dilma Rousseff.

A ideia de uma crise generalizada desapareceu magicamente, e o versal “CRISE ECONÔMICA” não apareceu na mídia brasileira em 2021.

E nesse cenário, o ministro da economia, Paulo Guedes, foi constantemente e totalmente blindado. Ele não aparecia no noticiário quando as notícias péssimas da economia eram anunciadas – até parecia que não havia esse ministério.

Guedes era ouvido apenas em poucas situações, quase como um consultor a falar de um problema externo – o problema nunca era com ele.

A desgraça econômica seguia sendo pintada com cores alegres pela mídia – repito, não estava dada a ideia de uma crise generalizada. Era e foi um quadro econômico silenciado – com pinceladas de problemas aqui e acolá, mas sem estabelecer as ligações necessárias para que a gente compreendesse que o buraco era e é gigantesco.

Por outro lado, a blindagem a Paulo Guedes seguia firme, e esse comportamento não se alterou nem mesmo no episódio do escândalo das off shores.

Deliberadamente, a mídia escondeu a informação de que as decisões do ministro da Economia afetam seus negócios no paraíso fiscal, que o artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal proíbe que funcionários do alto escalão mantenham aplicações financeiras passíveis de serem afetadas por políticas governamentais, que Paulo Guedes podia ter lucrado muito com a alta do dólar.

Foi uma blindagem indecorosa, pois o ministro Paulo Guedes, só pra lembrar, comanda uma pasta que englobou as antigas pastas da Fazenda, do Planejamento e do Comércio Exterior, ou seja, é um super Ministério. E suas ações impactam diretamente a variação do dólar, por exemplo. Mas nada disso escandalizou a mídia brasileira.

Apagamento histórico

Outro fenômeno bastante interessante de se observar na cobertura midiática deste ano foi o apagamento histórico, ou um silenciamento interessante na cobertura de alguns temas.

De repente, não mais que de repente, uma década e meia da história brasileira não aparecem, não existem para a abordagem (e sobretudo a comparação) relativa a grandes temas que se referem a conquistas sociais e econômicas.

Assim, assuntos como desemprego, aumento de renda, consumo das famílias, inflação, hábitos de lazer, cobertura vacinal têm abordagem prioritária de 1500 até 2003 e de 2015/16 até os dias atuais.

Mas nada aparece sobre o período de 2003 a 2014. Interessante, não é? Parece que o Brasil todo foi abduzido por mais de uma década. Que país era aquele?

Quando se fala que a fome voltou, as famílias estão comendo pé de galinha, a inflação está corroendo a cesta básica… tradicionalmente é preciso fazer uma comparação para que as pessoas compreendam de fato o movimento – se agora está assim, isso já foi diferente? Como e por quê? Isso não existe.

Se o Brasil voltou para o Mapa da Fome, quando ele saiu? Como era antes? O que as pessoas comiam em 2014? Elas viajavam? Como estava o dólar? E a gasolina?

O período de 2003 a começo de 2015 é um período que está sendo deliberadamente apagado da história brasileira pela mídia.

E outra condução que foi bastante curiosa e interessante de ser observada é relativa à abordagem sobre os enormes retrocessos provocados por Bolsonaro no país. Em várias edições, o JN tem mostrado esses retrocessos de modo bem efusivo. Mas eles não têm ligação com a história, com o movimento político.

Quando falamos em retrocesso, é preciso dizer em relação ao que era ou é esse retrocesso.

Trocando em miúdos: se há retrocesso, é porque em outro tempo era melhor, era diferente. Que tempo era esse? De quais governos? Quem eram os ministros? Seria preciso, então, mostrar na reportagem como era antes e por que ficou assim.

Por fim, para fechar este ano que mudou o resto de nossas vidas, quero dizer que discurso não se faz sem que sejam mostrados os vínculos históricos.

É essencial entender os movimentos da história para entendermos os movimentos de agora, para entendermos o buraco em que o país foi mergulhado.

Números puros não dizem nada – eles precisam estar ligados, conectados, precisam ser interpretados… Observando e fazendo as conexões todas, vemos então como a imprensa embrulha peixe podre em saco dourado para nos vender. E como muda de postura quando é conveniente.

E exatamente por isso, sigamos no exercício de desvelar e desnudar essas estratégias, que venha 2022.

*Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística pela PUC/MG