30 de outubro de 2024

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Monica Valente: ‘Mídia naturaliza fascismo como mera questão de opinião política’

Paralelamente à VII Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) formalizou-se a criação da Celac Social. um espaço integrado por mais de 300 organizações políticas, sociais e sindicais da América Latina e do Caribe, do qual participa ativamente o Foro de São Paulo e sua Secretária-Executiva, Monica Valente. A dirigente concedeu entrevista colaborativa ao Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA). Durante cerca de uma hora, ela dissertou sobre a importância da integração regional e a necessidade de preservar esta parte do planeta como zona de paz, apesar das pressões da OTAN; ao valor de que um país insular caribenho como São Vicente e Granadinas ocupe a presidência pro tempore da Celac; o papel geo-estratégico do Brasil; a necessidade de visibilizar as lutas de povos massacrados como nos casos de Peru e Haiti; e o preocupante avanço da ultradireita.

A entrevista contou com a participação de Jimena Montoya (Centro Latino-Americano de Análise Estratégica), Mariano Vázquez (Coletivo Sangrre), Felipe Bianchi (Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé), Paula Giménez (NODAL) e Javier Tolcachier (Pressenza).

Que mecanismos concretos, que experiências de outros processos de integração entre povos e entre Estados podemos resgatar para nossos projetos políticas que estão sob ameaça?

Tivemos um primeiro período de governos progressistas e populares na América Latina  e no Caribe no qual buscamos construir órgão multilaterais, espaços de concertação, de construção de unidade na diversidade para fortalecer o Mercosul, a Unasul e, claro, a Celac. Com a mudança na correlação de forças nos governos, seja por golpes, ameaças, lawfare e, em alguns casos, também por eleição, tivemos dificuldades para que a integração tivesse continuidade. É essencial que os movimentos populares, sociais, políticos e sindicais possam incidir sobre esses processos institucionais, levar suas propostas, dialogar com a presidência pro tempore, com os grupos de trabalho, de forma a colocarmos sobre a mesa nossas reivindicações, nossas visões. 

A integração só ocorrerá se os povos forem protagonistas. Por isso foi tão importante que a Celac Social entregasse ao presidente pro tempore, Ralph González (primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas) nosso documento. É forte a ideia de criar esse fórum para incidir na construção da Celac.

 Você esteve em Buenos Aires no lançamento da Celac Social, que já conta com 300 organizações e, a partir disso, já conseguimos ampliar bastante a visibilidade sobre a dramática situação de Peru e Haiti. Considera este espaço uma oportunidade para que esses países sejam vistos e escutados? 

Os órgãos multilaterais têm sua institucionalidade e a nós cabe colocar sobre a mesa os problemas que os povos estão vivendo, sugerindo saídas e soluções. Olhe o massacre no Peru, com quase 60 pessoas mortas em manifestações democráticas e uma crise que parece sem fim. Há que ter uma preocupação e, sobretudo, ação para ajudar o povo peruano a superar esse momento duro que vivem, assim como no Haiti. Por exemplo, também o que acontece com a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, que sofre uma perseguição hedionda. Um roteiro muito parecido com o que sofreu Lula no Brasil. Por isso temos de incidir na Celac institucional, criando espaços de concertação e diálogo para pautar e enfrentar esses problemas.

A pandemia contribuiu para acelerar um processo de transformação profunda de digitalização e aumento da desigualdade. Que tarefas devem assumir as organizações, os governos e os blocos de integração em relação a este momento que vivemos como humanidade? 

A declaração final da Celac tem um capítulo sobre o mundo digital e a democratização do acesso à Internet para os povos de maneira pública. É necessário que haja uma regulação, pois as chamadas notícias falsas têm muita incidência política sobre os povos. São mentiras difundidas por meio de redes sociais, com muito dinheiro e um financiamento que nem sabemos de onde vem. Por exemplo, o ataque terrorista que vivemos no Brasil, dia 8 de janeiro de 2023, foi organizado por esta rede de desinformação. Precisamos pensar como essas novas tecnologias impactam nossos povos desde o ponto de vista da sociabilidade, da construção de instrumentos coletivos de participação e incidência política, pois o mundo digital é um mundo solitário e nós sabemos que a ação coletiva é o que muda as coisas.

A pandemia demonstrou que é essencial para a integração regional que possamos articular cadeias produtivas regionais para que todos os nossos países se envolvam em um processo de desenvolvimento com benefícios para nossos povos.

É a primeira vez que uma nação insular anglófona do Caribe vai presidir a Celac. Qual a importância deste marco?

É uma grande felicidade saber que teremos um presidente pro tempore do Caribe, de uma nação insular, pois isso ressalta coisas que nos passam despercebidas como, por exemplo, os efeitos da mudança climática em nações insulares. O problema não é só a Amazônia e a destruição que promoveu Bolsonaro, ou a tragédia humanitária dos yanomamis, que nos dá muita vergonha. 

Outro tema importante é o idioma. Como Foro de S. Paulo, fazemos um esforço para fazer reuniões com intérpretes, pois a linguagem é uma maneira de trocarmos ideias, de socializarmos. Nossa América, por nossa luta e história, é uma pátria latino-americana e caribenha. Temos de nos ater ao exemplo histórico do Haiti, que foi um dos primeiros países a abolir a escravidão, impactando outroas nações. As lutas desses povos caribenhos são parte da nossa história de luta.

Quais são as expectativas em relação ao Brasil nesta nova etapa que se inicia?

Havia uma expectativa muito grande antes da eleição de Lula nos países e povos da região para que Bolsonaro fosse derrotado. Brasil tem uma importância geo-econômica e geopolítica estratégica, até pelo seu tamanho e seus 213 milhões de habitantes. Para qualquer ideia de integração, Brasil precisa estar envolvido – e não de maneira sub-imperialista, mas com propósito de cooperação, que sempre foi a política de Lula e do PT.

A volta de Lula ao poder compõe um mosaico interessante de governos progressistas na região. Como garantir que esses êxitos nas urnas se transformem, de fato, em conquistas populares?

A situação não é simples para nossos governos. Há uma dura crise econômico que se abate sobre o capitalismo mundial desde 2008, sem solução todavia. Depois, a pandemia, que acentuou as desigualdades e, agora, com o conflito entre Rússia e Ucrânia, são brutais os impactos na economia. 

A possibilidade de avanço na estratégia de integração regional com igualdade e justiça social será conquistada se os povos participarem como protagonistas. Também devemos considerar o crescimento da extrema-direita que busca legitimar-se como movimento de massas. Minha convicção é de que a luta de resistência de nossos povos nos faz sempre seguir cultivando esperanças e, como diz Cristina Kirchner, os povos sempre voltam.

Podemos dizer que o fascismo está às portas de nossas casas. Vemos o VOX (Espanha), por exemplo, articulando com movimentos de extrema-direita em nosso continente. Como podemos nos opor e combater este neofascismo “naturalizado”, sobretudo, pelos meios de comunicação?

Há uma tentativa em curso de normalizar o fascismo como se fosse uma questão de mera opinião política. Isso me assusta, pois alguns fatos mostram que os povos aprendem: antes da tentativa de golpe no Brasil, em janeiro, havia mais gente que se identificava com as ideias golpistas de Bolsonaro, que teve 49% dos votos. Agora, sua popularidade caiu significativamente (30%). A sociedade ficou assustada. 

Por isso é importante que o processo judicial desvende e puna quem financiou e organizou essa intentona terrorista, para servir de aprendizado à sociedade brasileira e para que nunca mais ocorra.

Se Fidel Castro falava tanto na “batalha de ideias”, precisamos de modo urgente voltar a pensar a questão, que tem a ver com a cultura, os valores.

Em que condições como região temos que firmar um acordo com a União Europeia para garantir o bem-estar de nossos povos?

Lula foi muito claro sobre isso: temos, sim, que fazer um acordo, mas há que atualizá-lo, debatendo alguns pontos que para nós, latino-americanos e caribenhos, são essenciais. Os europeus estão desesperados. Não podemos negociar individualmente como tenta o Uruguai, por exemplo. Não podemos aceitar um acordo que prejudique a nossa re-industrialização, por exemplo. Há aspectos de integração muito simples que foram ignorados na pandemia. Cuba foi exemplo do que sim, pode-se fazer: cinco vacinas.  

Que opinião você tem sobre a tentativa dos países da OTAN de ampliar o conflito bélico no Leste Europeu até a nossa região? Qual deve ser o papel da Celac na defesa da paz?

É um risco muito grande deixarmos que a OTAN militarize, com sua perspectiva de guerra, a nossa região, uma região de paz por tradição. Por isso, entre nossos países, construímos processos de diálogo e concertação. A Celac tem uma importância enorme, nesse sentido, de ter em sua concepção e estrutura modos de blindar a região dessa tentativa de ser sugada a um conflito mundial. Nossos três presidentes – Lula, Alberto Fernández e Gustavo Petro – foram claros ao dizer que não vamos participar desta guerra que é, sobretudo, terceirizada pelos Estados Unidos.