Antes de tudo, gostaria de agradecer imensamente a oportunidade de ter participado do grupo de pesquisa Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), vinculado ao Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, especialmente nas figuras dos professores Rogério Christofoletti e Samuel Pantoja Lima. E, assim, também me despeço como comentarista do Comentário da Semana, onde pude exercer, ainda que com limites epistêmicos, a função de analista crítico do jornalismo corporativo ou da mídia hegemônica burguesa. Nesse meu último comentário gostaria de trazer à baila um tema espinhoso, complexo e polêmico, mas que estará sempre presente, agora e futuramente, em nossas discussões políticas, sociais, culturais e ideológicas – já que está incorporado à sociedade civil por meio de um aparelho privado hegemônico poderoso e com capilarização profunda na sociedade brasileira: a Teologia do Domínio!
Jeferson Silveira Dantas | Observatório da Imprensa
A agenda teocrática ou neopentecostal no Brasil tem se configurado como uma força social e política destacada, tendo em vista os seus vínculos ideológicos com a extrema-direita, representadas por meio do bolsonarismo. Segundo o teólogo Eliseu Pereira, tal fenômeno político-religioso no Brasil tem relação direta com o sucesso da Teologia do Domínio nos EUA, onde o voto evangélico foi fundamental para a eleição de Donald Trump, mas que já havia crescendo desde a década de 1980 com o republicano neoliberal, Ronald Reagan.
Como os neopentecostais apresentam uma interpretação ‘peculiar’ e ‘ideológica’ da bíblia, a expressão ‘domínio’ foi retirada e operacionalizada tendo como referência o Antigo Testamento (Gênesis, 1.28), ou seja, a expressão ‘dominai a Terra’ não se aplicaria à espécie humana de forma geral, mas particularmente aos cristãos (os escolhidos), os únicos capazes de cumprirem tal tarefa no planeta!
Nessa direção, por meio de princípios teonímicos, o conjunto de leis de um país, segundo a Teologia do Domínio, deveriam refletir as leis de Deus, objetivando um nacionalismo cristão em larga escala, a supremacia religiosa de uma matriz evangélica associada, notadamente, aos neopentecostais no Brasil, e a visão teocrática sobre quaisquer questões provenientes da sociedade (mundo do trabalho, lazer, negócios, mercado, cultura, artes, escolarização básica, classe, raça, etnia, gênero, etc.).
De acordo com os estudos do teólogo Eliseu Pereira essa doutrina é atribuída a Loren Cunningham, fundador do ‘Jovens com uma Missão’ (JOCUM) e também a Bill Bright, fundador da ‘Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo’; tais doutrinadores religiosos teriam alegado o recebimento de tal missão divina por meio de um sonho na década de 1970. Logo, a finalidade da educação cristã e o seu espectro mistificador, deveria ganhar corações e mentes no controle das escolas e na formulação dos currículos, a fim de que os EUA se reconstruísse como nação com valores totalmente cristãos! Para tanto, o teólogo calvinista estadunidense, Rousas John Rushdoony, teria proposto dois caminhos: i. os cristãos deveriam educar seus filhos em casa (homeschooling); ii. os cristãos deveriam contribuir para o enfraquecimento do Estado e a sua ação na oferta da educação pública. Dessa forma, com o passar dos anos, todo o redesenho formativo escolarizado estaria comprometido com o ideário cristão, ou melhor dizendo, com o ideário teocrático da Teologia do Domínio.
Como os reconstrucionistas da Teologia do Domínio não acreditam na autonomia democrática, pública e laica da esfera secular, todas as questões humanas são de fórum religioso. O Estado tem de ser mínimo, sem a obrigatoriedade de prestar serviços públicos, favorecendo a ideologia patriarcal. Todo e qualquer valor humanista ou iluminista é encarado como subversivo, comunista, anarquista ou socialista, e deve ser eficazmente combatido/extirpado. E, aqui, acompanhamos outra faceta deste preocupante ideário teocrático autoritário: o seu vínculo com a ideologia ultraliberal de Hayek e Von Mises, pais do Neoliberalismo!
A agenda teocrática deveria incomodar em algum nível a mídia corporativa, pois ela mesma corre risco total de ser engolida e devastada pelo ultraconservadorismo religioso. Os pastores da Teologia do Domínio apoiaram Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil. Em tempos de eleições para o Executivo e para o Legislativo, a sanha dominionista avança em governos estaduais, municipais e na Suprema Corte brasileira; estão presentes em conselhos municipais e estaduais de educação, assim como nos conselhos tutelares (e também nas redações dos jornais). São milípedes imiscuindo-se em todos os setores da sociedade civil e também na sociedade política. Um avanço em largas passadas e sem precedentes!
O neopentecostalismo surgido nos anos 1970 no Brasil com forte influência/inspiração estadunidense, tornou-se assim, perpetuum mobile para outras doutrinas, como o da prosperidade, da batalha espiritual e do domínio, segundo estudos de Eliseu Pereira. A Teologia do Domínio vem se apropriando do evangelismo e da cooptação de seus fiéis numa cruzada política entre o bem e o mal, ou seja, um maniqueísmo vulgar sem a perspectiva de classe, mas que tem funcionado, estrategicamente. Não há interpretação crítica sobre a construção/elaboração bíblica; ela é tão somente ideológica e, deliberadamente, descontextualizada ou assentada em forte processo alienativo.
O fator desmoralizante ou desqualificador do jornalismo independente e investigativo imposto/desejado pelos dominionistas-bolsonaristas promovem toda sorte de desinformação, ignorância e violência sistemática. A não regulamentação das leis e a defesa da diminuição do Estado, favorece a ideologia dominionista, pois seus princípios são regidos por essa prática, como pudemos acompanhar nos quatro tortuosos anos do governo Bolsonaro (2019-2022). O neofascismo e o dominionismo representam os dois lados da mesma moeda. A luta da classe trabalhadora vai se tornando cada vez mais difícil, pois o precariado é presa fácil desta lógica mistificadora. Está mais do que na hora de se pautar e problematizar tal questão sob pena de a credibilidade jornalística (ou do que dela resta) ficar submetida ao cerco dos desmandos anfigúricos e, a todo momento, exaustivamente ter de responder a partir de fontes confiáveis e evidências, o que os dominionistas-bolsonaristas mais têm asco: a verdade.
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Jéferson Silveira Dantas é Historiador e Doutor em Educação pela UFSC. Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (EED/CED/UFSC) e pesquisador associado do objETHOS/UFSC.