13 de março de 2025

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Outros carnavais

Carnaval bombando, o povo seminu com o sorrisão pelas redes e eu no calorão úmido de Montevidéu, ouvindo um taxista reclamar das ondas de calor mais intensas neste ano por causa das mudanças climáticas que, nas palavras dele, “iam acontecer um dia, mas foram aceleradas pela ganância desses caras que andam de jatinho”, e ele apontou o céu. 

Sim, ainda existem taxistas normais e não negacionistas. E conversando com um deles, eu me dei conta de chegar ao Uruguai, o pequeno oásis democrático da América Latina, composto por 3,3 milhões de pessoas que comemoraram, no último 1º. de março, com a subida de um governo de esquerda, 40 anos de democracia ininterrupta.

A vice-presidenta do país, Carolina Cosse, ex-prefeita de Montevidéu, atribuiu o feito à cultura democrática de um país que, já no século XIX, passou por uma reforma educacional, levando em todos os rincões a escola laica, pública e gratuita. 

Em 1971, prosseguiu Cosse, em debate organizado pelo Instituto Novos Paradigmas (INP), esse espírito democrático permitiu a criação da Frente Ampla,  coalização das forças de esquerda e centro esquerda, que surgiu com a união dos trabalhadores uruguaios em torno de uma central única e dos estudantes num único grêmio, com adesão dos partidos de esquerda e das forças progressistas do país.

Também presente no evento, Alejandro Sanchéz, Secretário Nacional da Presidência, sintetizou: “Eles entenderam que ou nós nos juntávamos em torno de um programa comum de transformações ou seguíamos sozinhos com nossas ideias maravilhosas e perfeitas, mas sem mudar a realidade”. 

Foto: Tatiana Carlotti

O jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, diretor do Barão de Itararé, estava lá em 1971 e viu de perto: 

“A Frente Ampla do Uruguai, com Yamandu Orsi, reassumiu ontem a Presidência da República. Tenho uma relação sentimental de afeto com esse importante agrupamento político, fundado no dia 5 de fevereiro de 1971. Casei nesse mesmo dia em São Paulo e fui para Montevidéu no dia seguinte. Soubemos lá que a peça “Liberdade, Liberdade”, do Millor Fernandes e do Flávio Rangel estava em cartaz num teatro da cidade. Já havia visto no Rio e fomos curiosos ver a versão uruguaia. Foi ótima. Mas o que continua nítido na memória vinha da plateia. Entre as falas dos atores saudando a liberdade, ouviam-se gritos de “frente amplia”, recém fundada. Ao acompanhar de longe a volta da Frente Ampla ao poder, aquelas manifestações ecoam não apenas como lembranças de um momento feliz, mas como sinais de que a luta pela construção da Pátria Grande permanece viva”, contou Lalo nas redes sociais.

Dois anos depois do surgimento da Frente Ampla, a efervescência progressista foi sufocada por uma brutal ditadura, que encontrou resistência, em particular dos Tupamaros, uma das mais fortes organizações da luta contra a violência do Estado no continente, e que nos legou o grande José Pepe Mujica.

No Uruguai como no Brasil, a ditatura terminou em 1985. Também se passaram 30 anos para a esquerda chegar ao poder. Lá, em 2005, com Tabaré Vazquez; aqui, com Lula, em 2003. Os dois governos, de esquerda, continuaram no poder: Vazquez elegendo o sucessor Pepe Mujica em 2009; e voltando ao poder em 2015. Nós, elegendo e reelegendo Dilma Rousseff. A diferença, gritante, é que tomamos um golpe em 2016, interrompendo um ciclo de 13 anos de desenvolvimento social com crescimento econômico. 

No Uruguai, não houve golpe. Após 15 anos de Frente Ampla, o ciclo progressista foi suspenso com a eleição democrática, em 2019, de Luis Lacalle Pou do Partido Nacional, a coalização de direita e centro-direita do país. 

Lacalle venceu com um discurso de combate à violência, porém, no primeiro ano de seu governo, o chefe de segurança presidencial, Alejandro Astesiano, foi pego em um esquema de falsificação de documentos para emissão de passaportes para cidadãos russos. 

Outros casos foram surgindo, como o de Sebastián Marset, um traficante de drogas que o governo supostamente não monitorou; o ex-senador Gustavo Penadés do Partido Nacional, o partido de Lacalle Pou, acusado de pedofilia e de exploração sexual de menores. E outros casos de favorecimento de membros do partido na concessão de casas pela ministra de Habitação; espionagem dos senadores da Frente Ampla; contratação de serviços sem licitação… 

Por estas e outras, com 52% dos votos, a Frente Ampla voltou ao poder, agora, com Yamandú Orsi, herdeiro político de Pepe Mujica. 

Foto: Tatiana Carlotti

Repúdio à ditadura, em discurso e ato

Ao retomar o governo, a Frente Ampla encontra um Uruguai mais violento e mais desigual. Nas palavras de uma jovem professora primária, no centro de Montevidéu, “Lacalle só governava para os ricos. Para os pobres nada”. 

A violência cresceu, em particular a de gênero. Segundo a ex-presidenta da Frente Ampla e ex-senadora Mônica Xavier, também no evento do INP, houve um aumento expressivo da violência contra crianças e adolescentes por homens com a intenção de machucar as mulheres. “Estamos com agendas em função dos avanços que a ultradireita teve nos últimos tempos no nosso continente”, salientou. 

Nas ruas, o que vemos em todas as cidades, um aumento da população em situação de rua; a reclamação generalizada sobre a violência. Nada de novo para uma brasileira, porém, uma diferença é importante: a relação com a democracia e a memória da ditadura é muito diferente da nossa. 

À frente da administração do distrito de Canelones, onde nasceu em junho de 1967, Yamandú Orsi, também professor de História, assumiu o poder com um discurso firme em comemoração às quatro décadas de democracia no país. Já no Parlamento, ele repudiou o arbítrio da ditadura e sua brutalidade, e mencionou a corrupção dos militares. 

“Em 1985, o país recuperou a institucionalidade democrática após 13 anos de ditadura civil-militar, o período mais doloroso da nossa História, marcado pela perseguição, crueldade política e humana como método de governo; e pela pilhagem econômica como parte central desse projeto político. Há sequelas que continuam até os dias atuais”, disse.

Não somente o seu discurso contra a ditadura e os ditadores, mas seus gestos ao longo da posse passaram uma firme mensagem à população. Durante o cortejo, com Carolina Cosse ao lado, eles desceram do carro no meio da multidão para abraçar familiares dos mortos e desaparecidos na esquina da rua Nicarágua. 

Horas depois, a população em coro ecoava um sonoro ¿Dónde están? assim que os militares surgiram durante a posse, apresentando-se para o novo presidente e à sua vice. 

Em meio aos discursos antissistêmicos – leia-se fascista, negacionista e violento – no continente, Orsi fez uma ferrenha defesa da política e dos políticos, agradecendo a cada um dos ex-presidentes por seu compromisso com a democracia e por não terem embarcado em nenhum golpe no país. 

Lá estavam líderes e ex-presidentes do Partido Colorado, do Partido Nacional e da Frente Ampla. 

Estão sim, senhor!

Acompanhar a posse, o retorno da Frente Ampla, observando como a ditadura é reiterada e didaticamente repudiada pelo poder público foi uma experiência e tanto, sobretudo, às vésperas da torcida por “Ainda Estou Aqui” no Oscar, que ocorreu no domingo, dia 2. 

Lembrei daquilo que Hannah Arendt, a filósofa alemã, dizia sobre a fragilidade institucional na contenção do fascismo. Em 2014, o freio do Judiciário brasileiro falhou e permitiu a excrescência da Operação Lava Jato. Em 2016, foram os freios do Legislativo e assistimos ao rasgar da Constituição de 1988 e à quebra do pacto democrático. Em 2018, a prisão de Lula, e na sequência as violências de Bolsonaro e seu ministério de horrores. 

É impressionante que somente agora, com as revelações da PF, nós tenhamos conta do perigo em 8 de Janeiro de 2023. “Ainda Estou Aqui” vem, didaticamente, a calhar. Pena não ter ganho o prêmio principal da noite, o que teria feito a premiação do Oscar algo interessante. Ficamos com o melhor Oscar de filme internacional, como se a ditadura brasileira (e a uruguaia, a argentina, a chilena…) não dissesse respeito à política dos Estados Unidos.

O fato é que enquanto eles pulam o mea culpa e o Brasil reconfigura sua história através de um filme – que coloca em segundo plano a resistência da luta armada – o Uruguai segue firme. Neste pequeno país, ainda existem taxistas normais, o presidente pode falar em pilhagem dos militares, sem medo de represálias; e o ambiente ainda é muito mais de politização do que de polarização. 

Uma democracia, aliás, que se expressa na oferta de “felicidade pública”. Uma cidade arborizada no centro, com praças que se esparramam por todos os lados e, de quebra, 30 km de uma avenida, a Rambla, lotada de aparelhos de ginásticas, bancos de praça, iluminação e infraestrutura. A cidade abraça o Rio da Prata, que não é mar mas é como se fosse.

Em meio ao encantamento, durante uma entrevista para o Fórum 21, perguntei ao ministro de Relações de Exteriores do país, o jornalista Mario Lubetkin se, de fato, a democracia, o estado laico e a memória da ditadura podem ser consideradas mais consolidadas no Uruguai do que no Brasil. 

E ele me respondeu:

“É muito mais forte no Uruguai do que em toda a América Latina. Isso é resultado de um cultivo permanente. Quando Orsi menciona em seu discurso todos os líderes políticos, quando agradece pela democracia a todos os presidentes que passaram, ele reforça e aprofunda o valor democrático de todos nós”. 

*Tatiana Carlotti é colunista do Barão de Itararé e repórter do Fórum 21. Tem graduação em História (USP), mestrado em Literatura (PUC-SP) e doutorado em Semiótica (USP). Confira seus textos em tcarlotti.blog

Somos América é uma coluna periódica do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé dedicada à publicação de análises sobre comunicação, política e integração regional. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos que estão conectados à rede do Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.