O ativista Thiago Ávila, a jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh e a analista internacional Ana Prestes participaram, na última sexta-feira (27/06), de uma live promovida pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.
Por Tatiana Carlotti
Com apresentação da jornalista Rita Casaro, eles debateram o genocídio na Faixa de Gaza e a resistência heroica do povo palestino que, desde outubro de 2023, enfrenta diariamente os ataques aéreos e tiroteios das forças militares israelenses, além do brutal cerco à entrada de ajuda humanitária.
“Numa tentativa recente de levar esperança à população de Gaza, o veleiro Madleen, integrante da Flotilha da Liberdade, tentou navegar levando alimentos. Porém, quando estava muito próximo, ele foi interceptado. Seus integrantes foram sequestrados, detidos e tratados como criminosos pelo Estado criminoso de Israel”, sintetizou Casaro.
Destacando a impunidade e a paralisia dos países frente à guerra promovida por Israel, ela apontou que “pessoas se levantam no mundo todo — inclusive aqui no Brasil — com vozes corajosas, importantes e relevantes em defesa do povo palestino”.
Povo palestino está filmando seu próprio genocídio
Uma dessas vozes é a de Thiago Ávila, um dos doze tripulantes do Madleen, veleiro da Flotilha da Liberdade que existe em solidariedade ao povo palestino. “Para auxiliá-lo e colocar o foco sobre o cerco ilegal que Gaza sofre há 18 anos, a ocupação militar israelense que a Palestina vive desde 1967 e o processo de genocídio e de limpeza étnica que vem desde a Nakba, oito décadas atrás”, explicou.
Um processo, acrescentou, que se estruturou “em um Estado de colonização e apartheid, regido por uma ideologia racista e supremacista chamada sionismo”. Ávila salientou que não se trata de uma guerra religiosa, como muitos dizem. “O problema daquela região é essa ideologia supremacista e sionista aliada ao imperialismo — antes britânico, hoje estadunidense — os grandes inimigos da humanidade”.
“Nos últimos 630 dias (21 meses), esse processo colocou o povo palestino sob os olhos do mundo. Não por vontade dos grandes veículos da imprensa, muito menos das big techs que tentam restringir a circulação de informação de todas as formas, mas pela imensa coragem do povo palestino que está filmando o próprio genocídio”, afirmou.
Segundo Ávila, com isso, eles vêm mobilizando “milhões de pessoas, se não bilhões, para compreender o que é o imperialismo e o que é o sionismo”. O que estamos acompanhando, apontou, não é apenas um povo submetido a oito décadas de limpeza étnica, mas “um povo no epicentro de uma grande soma de todas as crises de um sistema capitalista com seus limites em esgotamento cada vez mais evidentes”.
“O povo palestino está sofrendo toda a fúria deste sistema em declínio em nome de todos os povos, e isso é injusto. Qualquer povo que sofre genocídio demanda a nossa solidariedade internacionalista, sobretudo neste momento, quando a heroica resistência palestina está cumprindo um papel em nome de toda a humanidade”, avaliou.
Para Ávila, “se os povos em luta e solidariedade conseguirem auxiliar o povo palestino a deter a violação onde ela se manifesta… se conseguirem estar lado a lado desse povo e eles vencerem ali, nós saberemos que podemos vencer em todos os demais lugares e derrotar o imperialismo e o projeto colonial sionista”.
Flotilha é uma entre várias ações
A Flotilha é uma entre várias ações neste sentido. Durante uma ação direta não violenta, explicou Ávila, “quando a ação dá certo, os povos conquistam direitos, ou seja, se Israel não impedisse a chegada da Flotilha, o cerco estaria rompido. Quando não dá certo e vem a repressão do Estado opressor, essa opressão fica muito evidente e há um desgaste de imagem”.
Ele mencionou que, em abril de 2024, a Flotilha tentou chegar em Gaza com três grandes barcos saindo de Istambul, na Turquia, inclusive um navio de carga com 5.500 toneladas de alimentos e mil pessoas de mais de 30 países. A ação, no entanto, foi interrompida pela guerra burocrática de Israel. Eles ainda tentaram seguir adiante com outro barco, mas ele quebrou no caminho.
Meses depois, eles conseguiram recuperar um dos três barcos iniciais, o Conscience, que seria bombardeado por dois drones cinco horas antes do embarque de 80 pessoas, incluindo ativistas e personalidades. “Nosso barco foi bombardeado um mês e meio atrás e nem a União Europeia, nem o governo de Malta condenaram esses ataques”, denunciou.
Apesar dos riscos, no começo de junho, doze ativistas partiram no Madleen, “um pequeno barco, levando alimentos, medicamentos, próteses para crianças amputadas e filtros de água” rumo à Gaza. Em Malta, eles tiveram treinamento para situações de ataque, bombardeios e toda sorte de violências durante a interceptação.
Ela ocorreu no sétimo dia da viagem, em águas internacionais, o que é condenado pelo direito internacional. Os ativistas foram sequestrados e permaneceram presos por cinco dias em Israel. Em seu balanço da missão, Ávila destacou que ela contribuiu para colocar “o povo palestino, a resistência palestina em Gaza e os 18 anos de bloqueio sob os holofotes”, ao lado de outras iniciativas, dando novo gás às denúncias.
Ele também comentou o ataque de Israel contra o Irã: “uma estratégia para desviar a atenção do massacre em Gaza”. Agora, convocou, “a tarefa é manter o foco no genocídio, no bloqueio e nas violações inaceitáveis desses 630 dias”.
Mentiras de Guerra
Na sequência, a jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh destacou as mentiras da propaganda de guerra em curso contra o povo palestino. Mentiras, salientou, “potencializadas pelo oligopólio midiático, nas mãos de grandes corporações transnacionais, que recebe [informação através] do oligopólio internacional e de suas agências internacionais, que continuam reproduzindo propaganda de guerra contra o povo palestino”.
Ao comentar a fala de Ávila de que o povo palestino está transmitindo seu próprio genocídio, Misleh mencionou o caso de jornalistas que perderam familiares e que, ainda assim, continuaram trabalhando para que outras pessoas não passassem pela mesma dor. “Graças a isso, o mundo todo está assistindo a esse genocídio, essa crueldade, esse crime contra a humanidade e vendo a cara feia de Israel, tão maquiada ao longo da história através de suas propagandas”, salientou.
Ela destacou o comportamento antiético da mídia hegemônica com suas “críticas pontuais e fragmentadas”. Também mencionou as mentiras divulgadas após o 7 de outubro, como a manchete da CNN sobre 40 bebês decapitados que nunca existiram, além dos estupros e outras barbaridades. “Toda acusação é uma confissão. Quem fez isso conosco foram eles”, afirmou.
“São 630 dias de genocídio” e um número alarmante de “pessoas assassinadas pelas bombas, balas, fome, sede, com fornecimento de armas do imperialismo dos Estados Unidos que dobrou a aposta”, apontou. Oficialmente, fala-se em 60 mil palestinos mortos e estima-se que 377 mil palestinos estejam desaparecidos sob os escombros, destacou.
Limpeza étnica
“70% das vítimas desse genocídio são mulheres e crianças” em meio à tentativa sionista de impedir a reprodução da vida e o futuro do povo palestino. “É uma tentativa de extermínio, de solução final, em uma contínua Nakba, a catástrofe palestina, cuja pedra fundamental foi a formação do Estado de Israel sobre os corpos palestinos e os escombros das aldeias de 78% do território histórico da Palestina”, salientou.
“O que ocorre na Palestina, sintetizou, é o que os antropólogos chamam de colonização por povoamento”. A substituição de uma população nativa originária por outra estrangeira. “Isso exige limpeza étnica e genocídio. Este é o projeto de colonização sionista”, explicou, ao contar que seu pai foi um dos 800 mil palestinos expulsos em 1948, após a destruição de 530 aldeias no país.
“A barbárie está aí na cara de todo mundo agora e só não vê quem não quer”, salientou. Em sua avaliação, Israel se vê avalizado a atacar os palestinos por uma linha de cumplicidade internacional. “Não estou falando apenas dos partícipes do genocídio, os Estados Unidos que são os principais fornecedores de armas; Alemanha que é o segundo fornecer e vários países da Europa. Estou falando da cumplicidade que se dá quando você não cumpre o que recomenda a Convenção de Combate e Prevenção ao Genocídio no Direito Internacional, como a [aplicação de] sanções, por exemplo”.
“Nós estamos pedindo que se rompa as relações com Israel, embargo militar, embargo enérgico (…) A Palestina foi convertida em laboratório do mundo, onde são testadas as tecnologias que Israel desenvolve com dinheiro do imperialismo”, salientou.
Segundo Misleh, 70% dessas armas têm como destino a exportação, inclusive para o Brasil. Ela citou a compra em setembro de 2024 de mais um drone israelense, mencionou que fuzis israelenses estão nas mãos das polícias dos governos estaduais. “O sangue derramado lá serve para oprimir e promover o genocídio pobre e negro nas periferias, dos povos indígenas, são as mesmas armas. A causa palestina é a síntese das lutas justas contra a opressão e a exploração em qualquer parte do mundo”, apontou.
Sul Global pode e precisa fazer mais
Na sequência, a analisa internacional Ana Prestes destacou a importância da ação da Flotilha da Liberdade para projetar “as muitas facetas do que está acontecendo”. “Vocês conseguiram mostrar toda a crueldade, o cinismo, o sarcasmo do governo de um estado assassino e genocida”, afirmou.
Prestes também mencionou atual fragilidade das Nações Unidas frente ao conflito. Ela citou a declaração de Alicia Bárcena, ex-secretária executiva da CEPAL e atual secretária do Meio Ambiente e Recursos Naturais do México, de que “estamos vendo se desmanchar essa grande obra da civilização que foram as Nações Unidas”, colocando a organização multilateral como algo do passado.
Também mencionou o pessimismo do chanceler Celso Amorim em declarações recentes sobre o direito internacional e o sistema de governança global e de relações entre as nações. “Estamos vivendo um momento muito paradigmático dessa organização internacional — ou melhor, desse mínimo de convivência entre as nações”, avaliou.
Isso ocorre, complementou, quando temos “o pior presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que neste cenário de instabilidade apresenta um nível de imprevisibilidade impressionante, o que carrega um risco enorme”, avaliou. Ela lembrou que durante o primeiro mandato de Trump, o Irã já era um dos alvos dos Estados Unidos.
“Foi o Trump que desfez aquele acordo com o Irã, no qual o Brasil inclusive tinha participado (…) Nós que vínhamos observando cada fala, cada pronunciamento tanto dos EUA quanto de Israel, sabíamos que o Irã sempre estava no discurso deles, apresentado como um alvo”, apontou.
A guerra de Israel e dos EUA no Irã
Segundo Prestes, para se manter na ofensiva, Israel precisava de uma ação regional, daí os ataques no Líbano, Síria, Iêmen, Iraque e, principalmente no Irã, “a nação que mais tem possibilidade de apresentar algum perigo para Israel na região e, ao mesmo tempo, o país mais comprometido com a causa palestina desde a Revolução Islâmica”.
Ela recordou que na véspera dos ataques de Israel contra o Irã, o país vivia um primeiro isolamento, mesmo que retórico. Frente ao genocídio em Gaza, Kaja Kallas, alta representante para Relações Exteriores da União Europeia, havia mencionado que os países europeus estavam estudando sanções econômicas contra Israel.
Naquele domingo, inclusive – o ataque ocorreu na sexta-feira, 13 de junho –, estava prevista uma rodada de negociações entre EUA e Irã. Em paralelo, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu enfrentava problemas internos relacionados às condenações de corrupção que pesam contra ele. “Ele atacou o Irã para sair deste isolamento, reunificar internamente e continuar o genocídio televisionado e ao vivo que a gente acompanha, com sucessivas mortes nas filas de distribuição de ajuda”, avaliou.
Prestes observou, ainda, que conforme ficam mais evidentes a crueldade e a marca do genocídio perpetrado por Israel, mas eles falam abertamente sobre coisas que antes não tinham coragem de dizer. “É como se estivessem aproveitando uma janela de oportunidades. Já que estamos sendo esculhambados pelo mundo e estamos no alvo, então, vamos com a carga máxima para ‘terminar o serviço’”, sintetizou.
Lula
“A esperança é que o Sul Global se posicione de forma mais forte. Que o Brasil rompa com Israel e aproveite este momento de poder de articulação no Sul Global. [O país] está sediando agora os BRICS, vai sediar a COP30, a presidência do Mercosul. É um ano muito internacionalizado para o governo brasileiro com todas essas cúpulas. A mensagem de paz do Brasil e a mensagem de paz da China são totalmente antagônicas e contrastantes com a parceria Israel e Estados Unidos”, apontou.
Em sua avaliação, “o Sul Global pode e precisa fazer mais”.
Prestes também alertou que a tentativa de interromper o governo Lula, em curso em Brasília, tem por trás interesses estrangeiros. “Há um lobby sionista muito forte porque eles sabem que o Brasil e o presidente Lula têm uma voz importante no cenário internacional; e uma capacidade de mobilização e de articulação que pode influenciar para isolar Israel e parar essa máquina de guerra”, concluiu.