25 de junho de 2025

Search
Close this search box.

A bordo da Flotilha

Os doze tripulantes do veleiro Madleen, da Coalizão Flotilha da Liberdade, não conseguiram cumprir o objetivo mais urgente de levar ajuda humanitária às famílias sitiadas em Gaza. Mas, eles conseguiram romper o cerco da informação que nos chega sobre a Palestina. 

Por Tatiana Carlotti, para o Barão de Itararé 

Em diferentes idiomas e para populações de diversos países, por meio das mídias sociais que mobilizam, Greta Thunberg (Suécia), Rima Hassan (França/Palestina), Yasemin Acar (Alemanha), Baptiste André (França), Thiago Ávila (Brasil), Omar Faiad (França), Pascal Maurieras (França), Yanis Mhamdi (França), Suayb Ordu (Turquia), Sergio Toribio (Espanha), Mark van Rennes (Países Baixos) e Reva Seifert-Viard (França) denunciaram o genocídio em Gaza e o uso da fome como arma de guerra. 

Durante a preparação da viagem, em sua travessia e agora em seus episódios finais, eles apresentaram o caráter pacífico da missão, trouxeram dados e os crimes perpetrados por Netanyahu, condenado como criminoso de guerra pelo Tribunal Penal de Justiça. Contaram a história da Palestina, cantaram sua resistência e explicaram a luta histórica que travam por sua existência, hoje e ontem. Definitivamente, informações que a gente não “vê por aqui”.

Há mais de oito meses sob bombardeios, Gaza se tornou um campo de extermínio a céu aberto. Desde o dia 2 de março, sua população, em torno de dois milhões de pessoas, teve uma grave restrição da ajuda em meio aos ataques e exaustivos deslocamentos. Somente em 20 de maio, após a ONU anunciar que 14 mil crianças faleceriam em 48 horas, houve uma flexibilização e os caminhões puderam entrar. 

Os relatos são desesperadores. Nos centros da Gaza Humanitarian Foundation (GHF), onde os alimentos são distribuídos, as pessoas estão  sendo alvejadas. A entidade é controlada por Israel e dos Estados Unidos e Philippe Lazzarini, chefe da agência da ONU para refugiados palestinos (UNRWA), já qualificou esses centros de “sistema de distribuição letal.” 

A fragilidade das Nações Unidas perante a catástrofe humanitária é também desesperadora. Com um apenas um voto no Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos já impediram o cessar-fogo e a criação do Estado Palestino. Em Paris, ao lado de Emannuel Macron, Lula escalou a crítica. “Essa guerra é uma vingança de um governo contra a possibilidade da criação do Estado Palestino. Por trás do massacre em busca do Hamas, o que existe é a ideia de assumir a responsabilidade e ser dono do território de Gaza”, afirmou. 

“O que nós estamos vendo não é uma guerra entre dois exércitos preparados, em campo de batalha com as mesmas armas. É um Exército altamente profissionalizado matando mulheres e crianças indefesas na Faixa de Gaza. Isso não é uma guerra. É um genocídio contra e em desrespeito a todas as decisões da ONU, que já pediu o fim essa guerra”.

Flotilha

Frente à inoperância de entidades e governos, a Coalização Flotilha da Liberdade vem pressionando desde 2010, com ações direitas em apoio aos palestinos em Gaza. A ação dos doze ativistas é uma dessas ações que previa um embarque em Malta, arquipélago entre a Sicília e a costa norte da África, no começo de maio.

Dias antes, porém, quando todos esperavam a chegada do Conscience, o navio que os levaria até Gaza, a embarcação foi atingida por um drone. Foram semanas de burocracias até a chegada do Madleen, que o substituiu. O ataque trouxe à memória um episódio dolorido da entidade. 

Foto: Tatiana Carlotti

Em 2010, Israel atacou a embarcação, o Marvi Marmara, que liderava uma flotilha com mais de 600 ativistas humanitários, políticos e médicos de 40 países. O objetivo era o mesmo, entregar alimentos, medicamentos, ajuda humanitária a Gaza, mas foram lançados granadas, gás lacrimogêneo e os soldados dispararam contra os ativistas, matando dez pessoas. 

Apesar dos riscos e apostando na presença das redes que acompanharam em peso os ativistas, além da atenção da diplomacia, eles zarparam no Madleen, no domingo, 1º. de junho. Já no segundo dia de viagem, eles avistaram os drones que passaram a vigiá-los durante todo o trajeto. No quarto dia, a Flotilha recebeu um pedido de socorro, em alto mar. Eles alteraram a rota para socorrer as pessoas de um navio que estava afundando. Chegando lá, eles se depararam com uma embarcação afundando e outra que se aproximava para resgatar de 30 a 40 pessoas. 

A embarcação foi identificada como da Guarda Costeira da Líbia, Tareq Bin Zayed, conhecida por graves violações de direitos humanos. No meio do resgate, em vez de entrar no navio, quatro pessoas se lançaram ao mar em direção à Flotilha da Liberdade. Elas foram resgatadas e levadas em segurança pela guarda costeira da Grécia. 

Em meio a isso, escalaram as ameaças israelenses contra a embarcação. Horas antes da interceptação, o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz”, postou nas redes sociais: “dei instruções ao Exército para impedir a chegada do ‘Madleen’ a Gaza. A Greta, a antissemita, e aos seus companheiros, porta-vozes da propaganda do Hamas, digo claramente: voltem, porque não chegarão a Gaza”. 

Às duas da manhã, de 8 de junho, eles avistaram a lancha da Marinha israelense. Era a interceptação do barco em águas internacionais e com pinceladas de terror psicológico. Um drone se aproximou do barco e lançou sobre os ativistas uma substância branca, que Yasemin Acar relataria tratar-se de uma espécie de pesticida. 

Pelos vídeos postados pela Flotilha, ainda pudemos ver vídeos do ataque desse drone, o momento de rendição pacífica da tripulação. As últimas imagens antes de Israel cortar a comunicação dos ativistas. Então, nas redes oficiais do governo, eles começaram a postar fotos dos ativistas sendo alimentados. “O iate show acabou”, zombava Katz.

Ilegalidade 

Israel alegou “legítima defesa” para a interceptação. Para o jurista John Dugard, professor emérito da Universidade de Leiden, na Holanda, a alegação israelense é “um absurdo jurídico”. “Para que se configure legítima defesa, Israel teria de demonstrar ter sido alvo de um ataque, o que evidentemente não ocorreu. Trata-se de um ato ilegal, uma violação direta da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e das decisões do Tribunal Internacional de Justiça, que já determinou que Israel deve garantir acesso irrestrito à ajuda humanitária em Gaza”, escreveu nas redes sociais.

Após a intercepção, a Flotilha lançou um comunicado. Nele, a advogada Huwaida Arraf explica que o Madleen era “uma embarcação civil, desarmada, operando dentro do escopo das leis internacionais”, e que sua “a apreensão é ilegal, arbitrária e configura crime de guerra, uma vez que impede o socorro humanitário a uma população civil”.

A interceptação também mobilizou os governos. O Itamaraty exigiu a libertação dos tripulantes, ao reafirmar “o princípio da liberdade de navegação em águas internacionais”; e sublinhar “a necessidade de que Israel remova imediatamente todas as restrições à entrada de ajuda humanitária em território palestino, de acordo com suas obrigações como potência ocupante”.

A vice-primeira-ministra da Espanha, Yolanda Díaz, classificou a ação como “violação flagrante do direito internacional”, declarando que “Israel comete um genocídio contra o povo palestino”. 

O governo da Turquia definiu o episódio como “terrorismo de Estado”, enquanto o Irã chamou de “pirataria”.  O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores iraniano, Esmaeil Baqaei, declarou que “como aconteceu em águas internacionais, o ataque a esta flotilha é considerado uma forma de pirataria, segundo o direito internacional.” 

A França, que tinha seis cidadãos a bordo, acionou seus canais diplomáticos, pedindo o retorno dos ativistas ao país, “o mais rápido possível”. Dias depois, porém, o país assinaria o documento do G7 em adesão a Israel em sua guerra contra o Irã. 

“A Flotilha navega quando os governos falham. E nós vamos navegar até que a Palestina seja livre”, garantiu Thiago Ávila sobre o futuro da missão, à jornalista Giovanna Vial, do Opera Mundi. Em uma longa entrevista, ele relata o que foram estes os últimos dias. Ávila chegou a fazer greve de fome e sede, sendo transferido de prisão e colocado em uma solitária. 

A deputada do parlamento europeu Rima Hassan também foi para a solitária, após escrever ‘Palestina Livre’ na parede da cadeia. Cada um pressionou, o quanto pode os seus governos visando a ruptura das relações diplomáticas com Israel. 

Ruptura diplomática

Segundo o chanceler Celso Amorim este é um assunto difícil. Em entrevista ao Brasil 247, ele afirmou que “a ruptura teria de ser feita com muito cuidado”, porque isso traria impactos sérios para os brasileiros que estão em Israel, na Cisjordânia e em Gaza. Para a Flotilha, a questão é imperativa. 

Após cinco dias preso, ao desembarcar com o uniforme da prisão e o violão a tiracolo, Ávila falou à imprensa. “O que o mundo vai fazer para derrotar esse regime? Não romper com essa ideologia odiosa é ser conivente. [O Brasil] está perdendo uma grande chance de se posicionar do lado certo da história. Líderes se engrandecem quando têm coragem”, afirmou.

Ele agradeceu o apoio que teve do Itamaraty e do governo brasileiro durante a detenção. “A representação diplomática que tinha lá foi muito solícita, deu atenção, esteve presente no momento devido, acompanhou a minha audiência de custódia”. Afirmou não ter “absolutamente nada de negativo a dizer do governo brasileiro”, mas manteve a posição: “o que eu peço é que o governo rompa imediatamente relações com Israel”.

Ávila explicou por que isso é importante. “Se a gente não rompe relações com essa ideologia odiosa… não só somos cúmplices como estamos perdendo uma grande chance. Líderes históricos, em momentos de crise como este, ou se engrandecem ou se apequenam. Nelson Mandela não se apequenou. Quando derrotou o apartheid na África do Sul, ele disse: ‘nossa liberdade não será completa enquanto o povo palestino não for livre’. E é verdade”.

“Os palestinos amam o povo brasileiro, amam cada pessoa brasileira. E nós também amamos o povo palestino. Então, espero, de coração, que a gente consiga honrar isso sendo um país que não é cúmplice, não é o quarto maior exportador de petróleo para aquela máquina genocida, não faz contratos de manutenção de drones, não treina as polícias estaduais e não compra rifles testados nos corpos dos palestinos. Eu tenho certeza que no coração de cada pessoa desse país está muito claro que matar crianças de fome é errado. Bombardear escolas, hospitais, abrigos, é errado. Só falta a gente transformar isso em ação dos nossos governos”.

Ele também passou uma mensagem à imprensa. “Essa questão da narrativa é muito séria porque o genocídio, esse processo de limpeza étnica que já dura oito décadas, só foi possível porque houve cumplicidade de vários setores: governos, diplomacia, setores econômicos, comerciais e, infelizmente, também o da comunicação. Mais de 200 colegas de vocês, jornalistas, foram assassinados em Gaza É muito importante que a gente honre esses colegas contando a verdade. É urgente que todo veículo fale a verdade”. 

“Durante um ano e nove meses, a cada hospital bombardeado, vinha aquela pergunta: ‘será que não tinha um túnel embaixo?’ A cada bairro destruído, ‘será que não tinha um alvo militar?’ A cada criança assassinada, ‘mas será que aquela criança não fez alguma coisa?’ Isso foi combustível para o genocídio. Pelo amor de Deus… Não hesitem mais, porque um bombardeio num hospital é um bombardeio num hospital. O assassinato de uma criança é um assassinato de uma criança. É simples assim. Um genocídio é um genocídio”, apelou.

Confira a íntegra da coletiva capturada por Paulo França no Canal Resistentes.

Coluna do Barão é um espaço dedicado à publicação de análises e reflexões sobre a comunicação e questões como a política, a economia, a cultura e sociedade brasileira em geral. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos, em sua ampla maioria, membros a Coordenação Executiva ou do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.