A lista das empresas que o ministro Paulo Guedes quer privatizar ainda este ano é uma salada mista e mal misturada, que não resiste a um escrutínio severo sobre as razões do governo para se livrar de tais ativos e transferi-los ao setor privado.
Algumas delas não desenvolvem atividade econômica propriamente dita, o que as torna desprovidas de interesse para os investidores.
É o caso da Engea e da ABGF, que depois comentarei.
Por Tereza Cruvinel
Outras, se vendidas, deixarão o Estado desarmado em áreas cruciais, como informatização e tecnologia digital. É o caso da Dataprev e do Serpro. Mas quero falar mais é da EBC – Empresa Brasil de Comunicação, que só pode ter sido colocada ali para ser presenteada a alguém.
Explicando melhor: a EBC é uma empresa pública criada para implantar e gerir o sistema público de radiodifusão, previsto no artigo 223 da Constituição para garantir a complementaridade no setor (o equilíbrio entre canais estatais, privados e públicos).
Isso, no tempo em que pensávamos estar aprimorando uma democracia. Hoje ela explora uma rede aberta, a da TV Brasil, que deve ter no máximo meia dúzia de canais: Rio, Brasília, São Luiz, São Paulo e talvez alguns dos canais que, quando eu era presidente, requeri e recebi para a empresa, tendo implantando apenas dois (Uberlândia e Juiz de Fora).
A EBC é também detentora de sete frequências de rádio. Entre elas a relevante Radio Nacional da Amazônia, que cobre um vazio de sinal na região, levando informação e serviços.
Para transferir estes canais ao setor privado, o governo não teria necessariamente que privatizar a EBC.
Como eles são concessões da União, o governo poderia suspendê-las, alegando qualquer coisa (hoje tudo se resolve com qualquer argumento), como insuficiência financeira da empresa para explorá-los.
Eles seriam depois licitados pelo ministério (Ciência, Tecnologia e Comunicações) e um interessado do setor privado poderia ficar com eles.
Portanto, tais canais não podem ser “vendidos” ao setor privado.
Por lei, devem ser objeto de nova outorga.
Se tomasse este caminho, ao governo restaria o que fazer com os funcionários.
E seria seu o imenso patrimônio, representado pelo parque tecnológico da EBC e pela fortuna que a empresa tem em imóveis.
Eles foram doados pela União à antiga Radiobrás pelos governos militares, e como a EBC incorporou a velha empresa, tornou-se dona deles.
Assim, tudo indica que Guedes e Bolsonaro estão querendo vender é este patrimônio, presenteando alguém com a infraestrutura e os imóveis da EBC, não com seus canais de transmissão.
A suposta privatização da EBC, com a venda de seus ativos e transferência de seus canais, seria o fim de qualquer possibilidade de equilíbrio entre as três pontas da radiodifusão.
Com a EBC em atividade, e preservando seus canais, ainda que hoje não se possa falar mais em TV pública ou rádios públicas – pois as premissas da comunicação pública foram rompidas e violentadas, primeiro por Temer, e depois por Bolsonaro – lá adiante, quando o inverno autoritário e regressivo passar, a democracia teria uma chance de restabelecer o sistema público.
Por isso Bolsonaro quer fazer terra arrasada da mais importante experiência de comunicação pública já realizada no Brasil.
Quer também salgar a terra. Não deixar meios para que lá adiante o projeto possa ser retomado.
Falar em privatização da EBC é uma impropriedade porque a radiodifusão, diferentemente de outras atividades econômicas exploradas pelo Estado, não pode ser simplesmente transferida, está regulada por leis específicas, como a que rege o sistema de outorgas, acima mencionado.
Ninguém vai poder comprar a EBC levando junto os canais da TV Brasil e suas rádios.
Tudo terá que ser realocado no plano de outorga e relicitado.
Por isso é óbvio que estão querendo vender é apenas o patrimônio da EBC, especialmente o imobiliário. Apenas em Brasilia, a empresa tem dois terrenos que valem ouro.
Um, defronte do Pátio Brasil, no qual funciona uma pequena unidade técnica de transmissão, é cobiçado pelos grandes incorporadores da cidade, que sonham ali erguer um espigão, um centro financeiro ou corporativo.
Já no tempo em que fundamos a empresa e eu era sua presidente, empresários da cidade mandavam emissários sondar uma possível venda do terreno.
Respondemos sempre que nosso projeto era construir ali, mais adiante, a sede própria da EBC.
Outro ativo cobiçado é a grande área que a EBC tem entre os setores de Oficinas e Armazenagem Sul, atrás do Carrefour.
Ele é cortado numa lateral pela linha do metrô, e por isso o GDF ainda terá que indenizar a empresa. É um terreno enorme, em local valorizadíssimo, onde hoje funciona apenas uma unidade de arquivo e a sede recreativa dos funcionários.
Outra grande área é a do Parque do Rodeador, na zona rural de Brazilândia, onde estão instalados transmissores de rádio, inclusive os que enviam sinal para a Amazônia. Há também o prédio da antiga Radiobrás, na Asa Norte, hoje alugado porque não comporta toda a empresa.
Fora isso, a EBC tem salas e imóveis no Rio de Janeiro, Manaus, Porto Alegre e muitas outras cidades.
E há o parque tecnológico.
Entre 2007 e 2011, período em que dirigi a empresa após sua criação, o ex-presidente Lula garantiu-nos o prometido orçamento de pelo menos R$ 350 milhões/ano. Conseguimos sempre mais que isso. O então ministro Franklin Martins sempre comprou nossas brigas por mais recursos.
Era forte, ia lá e conseguia.
Destes recursos, sempre investimos pelo menos R$ 100 milhões/ano em modernização e reequipamento. Hoje a EBC tem, na sede de Brasília, cinco estúdios de TV e uns cinco ou seis de rádio. Possui equipamentos ainda modernos, comprados naquele período, tanto de produção como de transmissão. Tudo isso vai ser vendido na bacia das almas, se o plano de Guedes for adiante.
Guedes, ao incluir a EBC em sua lista de entreguismos, atende a Bolsonaro na questão ideológica, em sua promessa de “fechar aquilo lá”.
E ao mesmo tempo, engorda a lista de prendas com que pretende presentear o setor privado.
Como eu disse no inicio, a lista é uma salada mista e mal misturada porque junta num balaio empresas com diferentes perfis e atrativos.
Duas delas, por exemplo, foram criadas para gerir ativos governamentais.
Quem, no setor privado, vai se interessar por elas, que contam apenas com funcionários e não desenvolvem atividade econômica específica? É o caso da Engea – Empresa Gestora de Ativos, e da ABGF, Agencia Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A. Entraram na Roda as Ceasas de Minas e São Paulo. Vai que podem interessar ao agronegócio. Mas, e a Casa da Moeda, como será isso? Uma empresa privada para imprimir nosso dinheiro? Isso é seguro?
A Lotex (loterias instantâneas), as Docas de São Paulo e do Espírito, também vá lá.
Mas será um crime grande privatizar os Correios, que com sua capilaridade unem os brasileiros, chegando aos mais remotos lugares, funcionando como banco onde nenhum banco existe.
E se o Serpro e a Dataprev foram mesmo colocadas na roda, quem cuidará da informatização do governo, do pagamento dos aposentados e de todo o sistema previdenciário?
Quanto o governo gastará contratando serviços de terceiros?
Perguntas não faltam mas eles não querem perguntas nem respostas.
Eles querem entregar tudo, depenar o Estado e nos entreter com o que parece ser um programa de governo mas é, na verdade, um programa de desmonte e destruição.
Bolsonaro já não disse que ficará feliz se seu mandato servir pelo menos para a desconstrução de tudo que hoje existe, para que tudo seja reconstruído no futuro? É isso.