23 de outubro de 2024

Search
Close this search box.

Para mídia da Guatemala, negar genocídio é liberdade de expressão

Estampando seu racismo, conglomerados de comunicação guatemaltecos fazem campanha para blindar o general Rios Montt, ex-ditador financiado pelos EUA e armado por Israel.

“Aí, o exército entrou no povoado e começou a usar a metralhadora, começou a atirar nas casas…
Mataram uma nossa irmã já idosa, com 66 anos. Quando o exército chegou, ela segurava uma criancinha pequena. Estava tentando vestir uma camisetinha na criança, quando o exército a matou. Foi um tiro na cabeça, outro no coração e dois nas pernas. A criancinha também morreu, mas não dos tiros: a mulher caiu de bruços em cima dela. 

O exército prendeu dois irmãos órfãos. Não tinham eles pai nem mãe. Um deles tinha 25 anos de idade e outro dez. Trabalhavam os dois e viviam felizes entre os da comunidade. O exército os prendeu, os foram arrastando e mataram os dois juntos. Mataram-nos com pau ou facão, pois simplesmente os deixaram sem cabeça. Depois de causar essas mortes, o exército queimou as casas da aldeia”

Ríos Montt, condenado por genocídio e crimes contra a humanidade na Guatemala.O relato acima, extraído do livro “A resistência na Guatemala”, de Gurriarán Javier (Edições Loyola, 1992), dá um quadro do que foram os massacres perpetrados pelas tropas financiadas pelos EUA e armadas por Israel, “desde a primeira vez, quando o exército queimou nossas aldeias, no ano de 1982”.

A forte presença do imperialismo estadunidense no país centro-americano remonta a 1954, com a CIA por detrás do golpe contra o presidente Jacobo Arbenz, que confrontou os interesses da United Fruit Company ao anunciar a reforma agrária. A partir de então, o regime acumulou cadáveres. De acordo com números preliminares da ONU, a política de terrorismo de Estado produziu 250 mil mortos e desaparecidos. Há quem aponte 400 mil. Sem falar nas centenas de milhares de exilados, num país de menos de 15 milhões de habitantes.

O tempo passou e, no dia 10 de maio de 2013, após mais de uma década de longo e extenso processo, a Justiça da Guatemala condenou o general golpista José Efraín Ríos Montt – que governou o país com mão de ferro entre março de 1982 e agosto de 1983 – a 80 anos de prisão, devido a prática de “genocídio e crimes contra a Humanidade”.
Na vasta e sanguinária obra de Ríos Montt, um apóstolo das relações carnais com os Estados Unidos, consta o massacre de 1.771 indígenas maia-ixil na região do Quiché. Conforme levantamentos das organizações de direitos humanos, somente esta etnia teria sido reduzida em 1/3 durante a “gestão” do ex-ditador, que comandou torturas, assassinatos e estupros coletivos em centenas de aldeias.

CAVALO DE PAU

Poucas horas depois do tão aguardado juízo contra Ríos Montt, a Corte de Constitucionalidade deu um cavalo de pau jurídico no processo e resolveu anular a sentença e determinar novo julgamento, contando para isso com o apoio dos conglomerados de comunicação, fiéis escudeiros das transnacionais e das empresas locais a ela subordinadas, na banana, no café e nas terceirizadas à la Bangladesh.

Empenhada na blindagem da política de extermínio, a mídia guatemalteca já havia se manifestado em uníssono contra a proposta do Centro para a Ação Legal em Direitos Humanos (CALDH) de “sancionar penalmente as pessoas ou meios de comunicação” que negassem o genocídio. O Centro também pediu que se estendessem as sanções a todas “aquelas expressões ou manifestações de conteúdo racial e discriminatório segundo as recomendações e observações emitidas por organizações internacionais das quais a Guatemala forma parte”.

Reduto dos barões da mídia, a Câmara Guatemalteca de Jornalismo disse “ver com estranheza” a proposta regulatória, alegando que o combate ao racismo e ao preconceito violaria o “direito à liberdade de expressão do pensamento e à liberdade de imprensa”. Seguindo à risca o ideário neoliberal da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a Câmara vê na proposta o dna de “governantes prepotentes e inescrupulosos” da Venezuela, do Equador e da Bolívia – exatamente os países do Continente que mais avançaram no reconhecimento dos direitos das comunidades indígenas. Alinhada às empresas, a Associação de Jornalistas Guatemaltecos foi mais realista do que o rei, qualificando de “vergonhosa” a declaração do CALDH, já que “se vive em um Estado de Direito, onde a liberdade de expressão é um direito humano”.

MÍDIA CALA, POVO FALA

Com faixas, cartazes e cruzes com o nome de vítimas, milhares de guatemaltecos marcharam na última sexta-feira (24) pela capital do país para repudiar a anulação da sentença, acusando a Corte de Constitucionalidade de “promotora da impunidade” ao blindar Ríos Montt.

Conforme o último relatório da organização Brigadas Internacionais da Paz, no rastro da impunidade tem se intensificado as agressões contra os defensores de direitos humanos. Entre os inúmeros crimes, assinala o documento, está o assassinato de Carlos Hernández, do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Saúde de Guatemala (SNTSG), em março, e de Daniel Pedro Mateo, do Movimento em defesa da terra e dos bens naturais, em abril.

A organização também alerta para a ocorrência de “graves agressões” às comunidades e organizações de San Rafael Las Flores (Santa Rosa), e denuncia a imposição do “Estado de Exceção” – com toque de recolher – nos municípios de San Rafael Las Flores y Casillas (Santa Rosa), Jalapa e Mataquescuintla (Jalapa).

Empenhada na defesa do governo do atual presidente Otto Pérez Molina, um general reformado alinhado com Washington, a mídia guatemalteca tenta transformar todo e qualquer conflito social em caso de policía, o que tem penalizado sobretudo a organização dos trabalhadores e camponeses. Devido à política de cerco e aniquilamento das entidades, com 15 sindicalistas assassinados a cada ano, a taxa de sindicalização despencou a 1,6%.

Por Leonardo Wexell Severo, jornalista e integrante do Centro de Estudos Barão de Itararé e Coletivo ComunicaSul